Sistemas
Educativos/ Organização e Avaliação
Ficha de leitura/Resumo
Simões, Graça Maria Jegundo,A Autoavaliação das escolas e a regulação
da ação pública em educação, revista de ciências da educação, nº 4,
out./dez.07, issn 1646-4990
Resumo:
A autoavaliação das escolas emerge
nas políticas educativas no quadro de novos referenciais e de novos
instrumentos de governanca, associada a conceitos como eficácia, eficiência e
qualidade. No entanto, há outros conceitos que se lhe colam, como controlo,
sujeição, coerção... Focalizando os contextos da ação e supondo a diversidade
das construções sociais, pretende-se investigar o seu impacto na regulação da
ação educativa, a partir de um olhar que se dirige para as organizações
escolares do ensino publico no interior de um intervalo teórico que opõe a
conformidade a emancipação.
Palavras-chave:
Politicas Publicas de educação,
Autoavaliação das escolas, Regulação, Logicas de Ação.
Ponto de partida:
a autoavaliação instituída, que mudanças,
traduz e constrói?
O nosso campo de estudo será a
autoavaliação das organizações escolares do ensino público e o nosso problema
de partida será procurar compreender que efeitos tem produzido e vão produzindo
as políticas públicas nos locus a que se dirigem, a partir de uma perspectiva
construtivista de política, que a descola das esferas superiores do poder e a
dissemina em todas as esferas de ação.
Os dilemas da descentralização e
da autonomia, em tensão com os desafios da comunidade europeia e da globalização,
levarão ao desenhar de um paradigma de governança em todos os níveis de decisão
politica. Definida por Jessop (2003, p. 1) como a “arte complexa de conduzir múltiplas
agencias, instituições e sistemas, que são simultaneamente autónomos uns dos
outros e estruturalmente agregados através de diversas formas de interdependência”,
esta governança exige que “os parceiros sociais se comprometam com uma autorregulação
da conduta, em nome de um projeto social”, funcionando o Estado como um
parceiro entre outros, legitimando-se na sua capacidade de “persuasão moral” e
de “mediação da inteligência coletiva” (ibid., pp. 12-13).
A autoavaliação das escolas públicas,
prevista na Lei no 31/2002, atinge hoje o seu protagonismo. Em vez do controlo normativo
universal, opta-se por uma logica de discriminação positiva, sendo a existência
de dispositivos de autoavaliação uma das condições de entrada no projeto-piloto
ministerial de avaliação externa, decorrido durante o ano de 2006 e agora
continuado pela Inspeção Geral de Educação.
A pressão para a autoavaliação é
grande, intensificando-se a procura de conhecimento por parte dos atores
educativos.
Paralelamente a esta corrente
uniformizante de preocupação com o controlo de resultados, na vida das escolas
correm outras logicas e outras práticas. É de supor que o encontro entre estas
logicas se repercuta na regulação interna das escolas e, consequentemente, na regulação
da ação educativa. “Estudar a avaliação em uso como pratica ao mesmo tempo
cognitiva, cultural e estratégica, é afinar o nosso conhecimento da ação humana
organizada” (Demailly et al., 1998, p. 54). O objetivo central da investigação
será, o de obter dados empíricos, numa perspectiva intensiva e não extensiva.
Sustentando a caminhada: guião de uma problemática
Referenciais e instrumentos na reconfiguração da ação pública
O conceito de referencial, central
numa das abordagens cognitivistas das políticas públicas, designa os quadros de
representação e de inteligibilidade do mundo que sustentarão as políticas públicas
e explicarão as suas mudanças. Muller (2003) propõe-o como uma resposta a questão
do “fabrico da ordem” nas sociedades complexas de hoje, e no, como elas mantem
uma unidade ou identidade, ligando os atores às estruturas globais de sentido
que condicionarão e orientarão a sua ação. Esta perspectiva, preocupada mais
com a uniformização do que com a fragmentação do poder, embora ela considere a
coexistência e substituição de referenciais, ajudara a perceber, por exemplo, a
predominância e disseminação dos referenciais neo-liberal e europeu, no que se
costuma designar por “contaminação” ou “empréstimo” (Barroso, 2003, pp. 24-29)
Considerando que os referenciais
correspondem “a crenças dos atores” e que eles mudam quando“não são mais
verdadeiros, quando não lhes permitem compreender a sua ligação ao mundo e agir
sobre ele, quando fica privado de sentido” (Muller,20003, p. 9), é suposto um
acordo generalizado da sociedade — referencial global — ou pelo menos do sector
— referencial sectorial. Como é que estes referenciais se constroem e se
generalizam ou não, e como e que a ação coletiva se constrói em contextos de
forte heterogeneidade, são as questões complexas desta teorização. Pensando nas
escolas, podemos supor que também ai se vão fabricando os desajustes de sentido
que levam a mudança de referenciais, mas também é de esperar que o mais notório
seja a coexistência de vários referenciais, uns mais ou menos
institucionalizados pela historicidade, outros mais fluidos e recentes. O
referencial global, ou referenciais globais, deverão pois influir não apenas no
modo de perceber e viver a avaliação pelos atores, mas também na própria
referencializacao de dispositivos e instrumentos.
O conceito de instrumento será
outra das nossas ferramentas teóricas que, na análise das políticas públicas,
permite revelar a sua falsa neutralidade técnica ou racionalidade científica e
mesmo o seu poder de coerção, ainda que baseados numa elaboração negociada.
Segundo Lascoumes e Le Gales (2004), todos os instrumentos, para além da sua
função pragmática ou administrativa, tem funções simbólicas de legitimação da
autoridade e axiológicas ou de transmissão de valores, logo implicam opções
politicas. Esta entrada pelos instrumentos acentua o aspeto pragmático das políticas
e a sua tendência para a estabilidade, na medida em que “a inovação reside
menos na criação do que na capacidade de agregação, nas técnicas de recombinação
e na produção de mudanças mínimas” (van Zanten, 2004, p. 26). Os instrumentos,
enquanto instituições ou “conjunto mais ou menos coordenado de regras e de
procedimentos que governa as interações e os comportamentos dos atores e das
organizações” (Lascoumes & Le Gales, 2004, p.15), podem ser entendidos como
estando ao serviço da reconfiguração do Estado, que aparentando um retirar pelo
uso de instrumentos mais informativos e comunicacionais e uma regulação menos
dirigista e mais participada, ganhando em legitimidade, ganha também em
controlo, impondo objetivos e estratégias. A vantagem da entrada pelos
instrumentos e a do seu relativo fácil acesso, ao contrário dos referenciais,
cuja relação com os processos de aprendizagem e com as mudanças políticas fica muito
mais distante.
De qualquer forma, ambos os
conceitos — referencial e instrumento — são importantes na construção de uma problemática
em torno da autoavaliação: ela será um instrumento de política publica, ou numa
leitura mais construtivista, de ação publica (Duran, 1999, citado por van
Zanten, 2004,p. 25) — a descentralização e a autonomia das escolas; ela será também
a tradução e ativação de referenciais dominantes, ao mesmo tempo que, enquanto
ação politica em si, poderá adapta-los ou recria-los.
Logicas de ação e regulação conjunta: dinâmicas de
conformidade e de emancipação
A autoavaliação pode ser assim
questionada enquanto parte de uma formulação política global, mais paradigmática
ou mais incrementalista, mas também como um processo politico em si, localizado
organizacionalmente, com uma auto‑referencializacao
e uma auto‑
instrumentação. Podemos considerar que os referenciais dominantes como
quadros de representação do mundo, ou seja, dos problemas e das condições para
a sua superação, explícitos ou implícitos nas medidas políticas, são depois
traduzidos nas lógicas de ação, por cruzamento com os interesses ou relações
de poder dos atores (individuais ou coletivos) e com outros referenciais sedimentados
(institucionalizados) ou alternativos (concorrenciais).
Lise Demailly (1998) refere-se a quatro
lógicas presentes na avaliação de escolas: a logica persistente dos
meios; a logica do modernismo organizacional com uma centralidade forte e os
professores como quadros; a logica propriamente neo-liberal e do mercado
escolar; a logica do projeto crítico e democratizante, contra o insucesso, pelo
trabalho de equipa intra e inter-profissional, com regulação política central e
regulações locais. Que no nosso caso se avança para uma logica centralizante
parece claro, tanto pela articulação que se anuncia entre avaliação externa e
autoavaliação, como pela já referida articulação com os contratos de autonomia.
Quanto as restantes,
independentemente de serem explícitas ou implícitas na política, o que
importara será mesmo a sua ativação nos contextos. Assim, de um ponto de vista estratégico,
pressupõe-se que o encontro de logicas distintas num contexto organizacional regula
e de certa forma amplia a racionalidade da ação e o seu grau de satisfação. No entanto,
persistem sempre problemas de regulação, sobretudo em termos de efeitos, e
sobretudo de efeitos sociais globais.
Perante as tendências atuais das políticas
públicas, a dicotomia entre regulação de controlo e autónoma (Reynaud, 2003)
pouco ajudara na compreensão da regulação. A de controlo pode bem assentar numa
base de autonomia e a autónoma pode bem ter uma predominância de autocontrolo.
Qualquer distinção entre regulações
beneficia mais de uma focalização nos seus objetivos e nos seus efeitos, do que
na sua origem ou na sua localização em relação a uma geografia hoje tao
indistinta e tao fluida do poder. Neste quadro de regulação politico-social cruzada,
em que se jogam referenciais, se ativam logicas e se instrumentaliza a ação, a questão
central parece-nos estar nos sentidos que se atribuem e buscam. E se toda a regulação,
como toda a ação social, deve ter as duas faces de Janus
- a do controlo, estabilidade, segurança e a da autonomia, mudança,
risco - importa que o seu efeito potencie e se traduza numa melhoria efetiva e
alargada das ofertas sociais.
Nesta “melhoria “incluímos os aspetos
económicos de potenciação de recursos e os aspetos humanos de aperfeiçoamento
da justiça e da equidade. Podemos então supor dois tipos de regulação — a de
conformidade e a de emancipação. A primeira que tem um sentido resignado,
constrangedor, de “mudar para que tudo fique na mesma”; a segunda com um
sentido voluntarista, libertador, de melhoria continua. A questão é que condições
favorecem uma ou outra destas tendências.
A combinação de abordagens a partir de uma perspectiva
construtivista
Tratando-se do estudo da autoavaliação
enquanto prática social, e das suas potencialidades na produção de novas representações
e de induzir transformações, é necessária uma focalização próxima e profunda
aos contextos, com um questionamento específico que devera combinar varias
abordagens.
1-A abordagem estratégica - para
perceber os jogos de interesses característicos de qualquer contexto
organizacional, deduzindo-se a sua ativação num processo de avaliação.
2-A abordagem cognitiva é incontornável,
sendo a avaliação ela própria um processo fortemente ancorado no conhecimento e
uma das dimensões privilegiadas no eixo de análise das suas potencialidades
transformadoras, enquanto instrumento, politico, de construção de referenciais
que suportem, mas também libertem, dos jogos de interesses. 3-A abordagem
institucional poderá auxiliar na leitura da história de algumas ideias, tanto
num sentido centralizado do sistema educativo, como mais descentralizado da
especificidade das organizações.
Este posicionamento justifica-se por
duas ordens de razoes:
-Tratando-se de um estudo enquadrado
na analise das politicas publicas, supõe “transversalidade intelectual” e
interdisciplinaridade (Baudouin, 2000), logo, “abertura teórica e metodológica”
para responder a “um outro olhar sobre o politico e o Estado, uma outra maneira
de se apoderar do objeto politico para lhe compreender o funcionamento”
(Muller, 2004, pp. 20-21), entrando pelos efeitos da ação politica e não pelas decisões,
das quais se questiona a racionalidade e o objetivo de resolver problemas
(Muller, 2003).
- Privilegiando uma estratégia
indutiva, esta não se coaduna com a opção por uma teoria, mas apenas com “referências
paradigmáticas discretas (...) co mobilizadoras de uma espécie de serenidade teórica”
(Fabre, 2005, p. 190). Estamos portanto no campo da análise das políticas públicas,
numa perspectiva construtivista, que amplia os olhares e as leituras dos
processos políticos, combinando a macropolítica com a micropolítica, ou seja,
“integrando os contextos de formulação e produção e o de as por em prática”,
com a inevitável reinterpretação, adaptação e transformação das politicas (van
Zanten, 2004, p. 14).
Em resumo,
numa perspectiva construtivista e numa tentativa de cruzamento das abordagens
dos “três i” — interesses, instituições e ideias
(Surel,2004, p. 452), pretendemos estudar o campo da autoavaliação das escolas
enquanto instrumento e processo politico, supondo que ela pode ser central na regulação
da ação publica em educação, confrontando saberes, poderes e quereres, num
quadro de desenvolvimento de competências coletivas situadas, mais capazes de
dar conta das qualidades educativas necessárias a uma construção democrática.
Ancorando o estudo: questões e estratégias de pesquisa
A investigação focaliza-se em desocultar,
analisar e interpretar as mudanças que se operam nas organizações escolares,
com a introdução de uma nova medida politica, que se configura como um
instrumento de alteração a política de autonomia e gestão das escolas públicas.
Interessa entender esses dois vértices — a componente cognitiva e estratégica -
que guia as ações e os efeitos dessas ações na regulação politica e social da organização.
O estudo de caso será o método
mais apropriado para uma aproximação a um contexto de ação, sobretudo quando
esta em causa a deteção e descrição de relações organizacionais numa
perspectiva global. Só num estudo de caso poderemos ter acesso aos atores
integrais e às suas logicas de ação, bem como a um contexto global e complexo,
no qual se poderão observar os reais efeitos de uma política.
Soltando os desejos, em busca das possibilidades
Na leitura das complexidades das relações
causa-efeito, todas as formulações podem ter os seus contrários. Como revelam
os estudos na área da avaliação e da autoavaliação organizacional, não existem
processos perfeitos, nem mesmo condições perfeitas que determinem o sucesso
destas práticas, tomada a sua valência de instrumento de melhoria.
No entanto, e ainda que
teoricamente, ficam sempre as possibilidades deixadas a qualquer processo de construção
social, sobretudo quando movido pela necessidade e pela vontade de um avanço e não
apenas de uma adaptação. Será a logica do “mudar o que há a fazer”, ou o “fazer
outra coisa”, em vez do “mudar a maneira de fazer” ou o “mesmo de outra maneira”
(Vial, 2001, p. 74). Este autor propõe a imagem da espiral em vez do círculo
para se referir a regulação — “um vai e vem do todo as partes e destas ao
todo”; “o passar do nível das coisas dadas para o nível da transformação”
(ibid., p. 74).
O que se “entreve” como
possibilidade num processo de autoavaliação da organização escolar e o “ideal”
da integração da avaliação nos processos políticos, que, sempre serão os das escolas,
partindo do princípio que ela será também um processo de construção de
conhecimento e um espelho de argumentos para a negociação e para a ação. A
“cultura de avaliação” pode assim ser entendida como um processo intrínseco de construção,
e não como uma condição ou uma finalidade da avaliação.
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