quinta-feira, 7 de junho de 2012


Ficha de Leitura/ Ficha Resumo

Ramos, Conceição C., REGULAÇÃO DOS SISTEMAS EDUCATIVOS,O CASO PORTUGUÊS

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A PARTICIPAÇÃO E OS ACTORES – DOIS CONCEITOS EM EVOLUÇÃO

4-Do que atrás fica dito sobre a visão da administração introduzida pela LBSE, a participação social e o reconhecimento dos atores educativos e sociais são elementos estruturantes na racionalidade do novo modelo de regulação administrativa.
No entanto, é relevante, para a compreensão do alcance da mudança, analisar as interpretações políticas que o termo participação foi assumindo nos contextos históricos não democrático e democrático, por se tratar de um conceito-chave na mudança e distinção entre o estatuto de agente e ator dos principais intervenientes no processo Educativo.
Sem nos determos na análise da noção corporativa de participação da Constituição de 1933 e que enforma o sentido do termo participação na Reforma da Educação de 1973 (Lei 5/73), situaremos esta questão com as seguintes considerações.
Num estado corporativo que põe acima do individualismo dos interesses a realização dos fins sociais, o momento de participação da Reforma da Educação representa uma forma de legitimação de uma opção política, definida pelo governo ex ante. No entanto, teve o mérito de trazer para a opinião pública as questões da Educação e de despertar a consciência nacional para a sua importância. Porém, esta discussão não incluía o modelo de administração central (D.L. n.º 408/71) que fora já concebido e concretizado, sem ter sido objeto de qualquer consulta e sem prever, no seu funcionamento, qualquer tipo de participação fora do quadro de princípios do corporativismo.
 Sobre esta questão Galvão Telles (1968:30), ao referir as matérias e as pessoas a quem foi pedida a elaboração de relatórios escreve:”… Proença de Figueiredo, Reestruturação do Ministério da Educação. É de notar quanto a esta última matéria da reestruturação do Ministério da Educação, que se resolveu depois deixá-lo de fora do estatuto, continuando todavia a trabalhar-se nela como objeto de diploma a publicar autonomamente, diploma de conjunto que se seguirá aos vários que vêm sendo promulgados com a reforma de serviços antigos ou a criação de serviços novos…”, procedimento que foi mantido pelo ministro Veiga Simão.
O Instituto de Ação Social Escolar é um bom exemplo para confirmar a orientação, na medida em que, para o tempo, constituía do ponto de vista da estrutura e do ponto de vista da missão uma inovação na estrutura orgânica do Ministério da Educação.
É um serviço que tem afinidades de objetivos e funções com instituições de solidariedade social, mas não prevê, no seu quadro de funcionamento, para além de uma colaboração informal, outras formas de participação ou colaboração com a sociedade civil.
As reuniões promovidas pelo Ministro da Educação com presidentes de câmaras, com os reitores e diretores de escolas são um segundo exemplo para definir uma noção de participação passiva, porque, na sua essência, são uma forma de obter a cooperação e a adesão ao projeto na ordem constituída. Educados para a passividade e no espírito de aceitação e de obediência, os corpos sociais mais diretamente interessados na educação - pais e professores - não marcam presença na decisão política, porque estão integrados numa ordem social que vê, nos primeiros, fornecedores da “matéria-prima” e, nos segundos, os agentes e instrumentos para levar a cabo uma política de desenvolvimento, segundo orientações conformes às correntes de pensamento científico da época, designadamente a teoria do capital humano (Denison, 1967; Becker, 1964).
Nos discursos do Ministro Veiga Simão, esta é uma ideia-força, muitas vezes repetida, em situações diferentes e que, a título meramente exemplificativo, citamos duas passagens: Num programa de ação, que o próprio Ministro define como de inquietação, refere-se, em vários discursos, e nas mais variadas circunstâncias, a este aspeto que exemplificamos, dando com exemplo as seguintes frases”… trabalhemos para esse fim ignorando os que nada fazem e tudo criticam, os que defendem interesses particulares que superam o interesse geral, mantém situações de comodidade egoísta ou entravam seriamente a ação do governo empenhado na resolução do problema educativo…” (Simão, 1973: 51-54).
“…No entanto reforma e métodos são frontal ou capciosamente pelos que não suportam mudanças, muito embora alguns não tenham a coragem de as criticar nos seus fundamentos, ou pelos que sempre desejosos de implantar a sua ordem obedecem ao princípio de quanto pior melhor. Uns e outros inimigos nas ideias unem-se nas críticas destrutivas das reformas e alguns embora nada tenham feito para prestigiar as instituições, mas muitas vezes contribuído para o seu descrédito desejam agora apresentar-se como guardiões de valores que nunca foram postos em causa. (Simão, 1973:160).

4.1. A substituição de papéis: de objetos e agentes a sujeitos e atores
No entanto, com a queda do regime não democrático, a visão política sobre o papel e ação dos principais intervenientes na Educação alterou-se significativamente. Registamos três situações que refletem a evolução do posicionamento dos intervenientes mais diretos no Sistema Educativo:
1.º Registo – 13/4/ 1973 – A geração a que pertencemos habituou-nos a não contestar e a não exigir: – solicita, aguarda e no fim se vê definidas as suas pretensões agradece.
A geração a que pertencemos quando reconhece que os ventos da história mudaram de direção e alguém chegou a esta casa com intenção de colocar o professor – o principal agente da educação e do ensino no seu devido posto não pode deixar de se regozijar e de lamentar não ter nascido 20 anos depois…” In: Jornal O Século: Maria Amélia de Matos Liceu D. Duarte em Coimbra, na audiência concedida pelo Ministro da Educação, falando em nome de um grupo de professores que agradece a concessão de diuturnidades.
2.º Registo – 23/71974 – Multiplicação de iniciativas, experiências diversificadas, tantas vezes falta de normas, de rumos, conduziram a decisões unilaterais, conduziram a exceder em muitos casos, a competência de poderes que, normal e legitimamente, devem ser assumidos. Daí um certo espírito de totalitarismo, ousemos dizê-lo de sinal contrário. A atitude de querer impor aos outros os nossos pontos de vista, em vez de procurar persuadi-los, e de dialogar realmente como é do autêntico espírito da democracia. É inaceitável que se tomem decisões unilaterais. Elas devem resultar da conjugação de esforços, da responsabilidade de quem deve tomá-las, ouvindo todos em franco e aberto diálogo….
Há que reformar o estatuto da função pública, admitindo a sindicalização de professores e dos quadros de pessoal, que são interlocutores válidos e úteis para todo o nosso trabalho mas que não podem confundir-se com órgãos de Poder nem de exercício da administração.
A escola é uma associação, é uma colaboração de professores e investigadores com estudantes e alunos, com todo o pessoal.
Todos têm que exercer as suas funções respectivas, que não devem confundir-se.
… E há o governo-geral da escola em que os conselhos ou comissões eleitas desempenham um papel primacial, comissões devidamente eleitas a partir de cadernos eleitorais feitos com isenção, para as quais a votação se faça por escrutínio secreto, único que é democrático; comissões portanto onde estejam representados os vários elementos componentes da escola e se tracem as grandes linhas de orientação dentro do contexto traçado pelo ministério que é o contexto da política nacional ao serviço de todos os portugueses. Porque não podemos ter cada escola como um feudo independente: a escola responde perante a Nação...
A este Ministério compete assim coordenar todos os esforços e decidir, aprovar ou rejeitar iniciativas, sempre aberto ao diálogo, à colaboração, às críticas rudes que queiram fazer-lhe. Mas não sujeito a imposições, porque a imposição é uma atitude fascista…
Apelo para a opinião portuguesa para que participem num grande projeto nacional de educação nova e de criação de cultura …  Vitorino Magalhães Godinho – Ministro da Educação e Cultura, Declarações prestadas em Conferência de Imprensa.
3.º Registo 23/10/1976 - A escola sofreu nos últimos anos o efeito da descompressão da vida política nacional, o que levou a saudáveis atitudes de destruição de estruturas antigas, também fez ruir a disciplina indispensável, para garantir o funcionamento de qualquer sistema educativo…. É tempo colher a experiência com a necessária lucidez, separar a demagogia da democracia e lançar as bases de uma gestão que, para ser verdadeiramente democrática, exige a atribuição de responsabilidades aos docentes, discentes e pessoal não docente na comunidade escolar... O conselho diretivo dos estabelecimentos de ensino manterá estreitos contactos de cooperação com as associações de estudantes e de encarregados de educação.
Decreto-Lei n.º 769/A/76, de 23 de Outubro – Preâmbulo e artigo 52.
a) A voz autorizada da professora que fala em nome de uma classe, onde o mal-estar se consente de forma obediente e conformista e se manifesta para agradecer e aplaudir aquilo que não houve coragem para de outra forma exigir;
b) A intervenção pública de um Ministro da Educação que denuncia corajosamente uma situação de mal-estar e indisciplina e anuncia um projeto nacional de educação democrática, reconhecendo o direito de associação de professores e estudantes;
c) A voz do poder constituído, feita lei, que institucionaliza o quadro legal e os instrumentos necessários à normalização e regulação de um processo de participação que anteriormente se auto-organizara.
Estes textos permitem-nos distinguir vários momentos na evolução do conceito primitivo de participação: passividade e legitimação das decisões políticas, centralmente definidas; autogestão revolucionária e representatividade e participação social.

4.2. Da cidadania representativa ao direito social de participação
A fase descrita no primeiro texto traduz uma conduta social dos professores, inscrita num sistema de relações, em que a intervenção destes nas decisões se mantém num plano meramente funcional e desprovida de sentido político.
São agentes e reconhecem-se como tal. Trata-se de uma participação funcional que se faz pela via formal-legal, no respeito pela ordem hierárquica para pedir ou requerer o deferimento de necessidades ou pretensões ou para responder, se questionados, a certas questões julgadas de interesse pela tutela. Este quadro é destruído pela mobilização social, ocorrida no contexto revolucionário de 1974, seguindo-se uma fase de participação intensa.
Foi o tempo da participação coletiva em assembleias gerais de escola, de professores e de alunos (RGE’s, RGP’s, RGA’s) que se sucediam dia após dia, auto designando-se e atuando como soberanas na resolução dos problemas da escola, equacionados à luz de critérios ideológicos ou de lógicas de atuação de orientação partidária.
Foi a tomada de poder por professores e alunos, a autogestão nas escolas, sem, no entanto, esta tomada de poder significar uma vontade de participar na decisão política ao nível da administração central, visto que, na leitura que fazemos pela vivência do processo, utilizamos o termo auto organização com duplo sentido: na aceção que lhe é dada na linguagem comum e científica. Sob o ponto de vista dos professores, auto-organização significa que, no sistema de gestão, cada participante é também um gestor. A hierarquia é substituída pela heterarquia ( organização social descentralizada entre iguais) no princípio de comando potencial, a autoridade pela informação. A auto-organização, no sentido de desorganização, de crise de valores de normas, de coletividades ou de papéis (Touraine, 1993: 185) significava mais uma reação contra as estruturas de dominação na escola que representavam o regime deposto e uma contestação por motivos ideológicos das medidas tomadas pelo Ministério da Educação.
Professores e alunos assumem o papel de atores principais, num sistema fechado, apesar de, neste período se encontrarem ativos e atuantes grupos sociais, como as comissões de moradores, tribunais populares, comissões de saneamento. A escola se solidariza com as tomadas de posição de trabalhadores em luta e aprova moções de apoio e solidariedade nas suas assembleias, mas permanece uma comunidade escolar corporativamente fechada à participação de atores sociais, mesmo dos mais próximos, isto é, os pais e encarregados de educação.
Os professores e as estruturas sindicais que os mobilizavam, agem, politicamente, mais por motivações ideológicas e por motivos profissionais e funcionais. Não há notícia de uma contestação coletiva contra a estrutura burocrática e centralizada do Ministério da Educação.
A organização do sistema é aceite como uma fatalidade. A contestação dirige-se à atuação e orientações políticas do ME, sem a exigência de uma participação institucional nas macro decisões. No coletivo de cada escola, decide-se sobre a alteração de programas e delibera-se sobre questões do funcionamento da escola, porque os acontecimentos se precipitam num círculo vertiginoso de mudança que o ministério não acompanhava.
 A investigação sobre a participação dos pais e encarregados de educação permite a compreensão do comportamento da sociedade portuguesa, quanto à participação social, já que, o governo desempenha um papel de facilitador da participação, sem que esta tenha atingido níveis e formas de intervenção política suscetíveis de se identificarem intervenções de fundo, vindas de baixo para cima, invertendo ou modificando a agenda política educativa.
 Sobre esta matéria, Rogério Fernandes, diretor geral à data testemunha “… Assim, ao ocorrer o 25 de Abril de 1974, as instituições educativas tinham-se tornado um dos terrenos mais conflitivos da sociedade portuguesa, não apenas como epicentro de movimentos reivindicativos mas também como terreno onde se esboçavam propostas educacionais alternativas de modernização. Entre elas, a primeira experiência de acesso ao poder e ao exercício do controlo institucional pelos professores, isto é a destituição de reitores e diretores de estabelecimentos oficiais e a sua substituição por comissões diretivas provisórias com as quais se iniciou o processo de gestão democrática…
A necessidade de instituir as regras do jogo democrático que a intervenção do ministro explícita e concretiza com detalhe, no segundo registo, marca o começo de uma outra fase de participação.
Pode dizer-se que a participação passa da fase de auto-organização para uma fase de regulação pela ação crítica institucional (Touraine 1993) que surge, da parte da tutela, numa situação de bloqueio da administração central, de uma hegemonia dos professores, na condução dos processos de gestão e mudança e numa crise organizacional de falta de autoridade.
Essa ação manifesta-se pela publicação de dispositivos legais (D.L. n.º 221/74; D.L. n.º 735/A/74), que regulam o sistema por retroação, isto é, a lei vem consagrar situações de facto, introduzindo, a partir delas e apesar delas, uma nova ordem (note-se que as assembleias gerais não são consagradas na nova lei. A paridade entre docentes e discentes nos órgãos de gestão é substituída pela representatividade proporcional, no sistema de relações e, no eixo autonomia/dependência, a tensão entre a emancipação e a regulação pende a favor da regulação).
Os novos órgãos de gestão colegiais instituídos (comissões de gestão) nem sempre funcionam e apresentam dificuldades de implantação que são resolvidas pelo Ministério da Educação com a nomeação de órgãos unipessoais (encarregados de gestão) em muitas situações e até, como já escrevemos em outro lugar, acontece a nomeação de gestores militares para as escolas que, na avaliação do Ministério da Educação, estavam desgovernadas.
O terceiro registo representa a recuperação da legitimidade e da autoridade do Ministério da Educação. É o retomar da regulação burocrática do sistema, que ocorre em 1976, com a publicação do diploma da gestão (D.L. n.º 769/A/76) e com cuja aplicação a escola, acompanhando aliás o contexto social e institucional geral do País, tende a integrar-se num período de normalização (Ambrósio, 1992). Quando a Lei de Bases do Sistema Educativo institui a participação de atores sociais, decorrera já um período de dez anos de experiência, sedimentação e interiorização de uma cultura de democracia representativa. 
Os atores sociais educativos (pais, professores, alunos) já tinham assegurado de jure e de facto o seu papel de atores na administração do sistema pela representatividade nos órgãos e estruturas da escola (Conselho Diretivo, Conselho Pedagógico, Conselhos de Turma, Conselhos Disciplinares). Os professores tinham assumido, por eleição, cargos nos diversos domínios de gestão. Os pais já se haviam organizado e constituído em associações e confederações desde 1977 e tinham assento em órgãos da escola, o mesmo acontecendo com a representação do pessoal não docente. 

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