Ficha de Leitura/ Ficha Resumo
Ramos,
Conceição C., REGULAÇÃO DOS SISTEMAS EDUCATIVOS,O
CASO PORTUGUÊS
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
A PARTICIPAÇÃO E OS ACTORES – DOIS CONCEITOS EM EVOLUÇÃO
4-Do que atrás fica dito sobre a visão da administração
introduzida pela LBSE, a participação social e o reconhecimento dos atores
educativos e sociais são elementos estruturantes na racionalidade do novo
modelo de regulação administrativa.
No entanto, é relevante, para a compreensão do alcance da mudança,
analisar as interpretações políticas que o termo participação foi assumindo nos
contextos históricos não democrático e democrático, por se tratar de um
conceito-chave na mudança e distinção entre o estatuto de agente e ator dos
principais intervenientes no processo Educativo.
Sem nos determos na análise da noção corporativa de participação
da Constituição de 1933 e que enforma o sentido do termo participação na
Reforma da Educação de 1973 (Lei 5/73), situaremos esta questão com as
seguintes considerações.
Num estado corporativo que põe acima do individualismo dos
interesses a realização dos fins sociais, o momento de participação da Reforma
da Educação representa uma forma de legitimação de uma opção política, definida
pelo governo ex ante. No entanto,
teve o mérito de trazer para a opinião pública as questões da Educação e de
despertar a consciência nacional para a sua importância. Porém, esta discussão
não incluía o modelo de administração central (D.L. n.º 408/71) que fora já
concebido e concretizado, sem ter sido objeto de qualquer consulta e sem
prever, no seu funcionamento, qualquer tipo de participação fora do quadro de
princípios do corporativismo.
Sobre esta questão Galvão Telles
(1968:30), ao referir as matérias e as pessoas a quem foi pedida a elaboração
de relatórios escreve:”… Proença de Figueiredo, Reestruturação do Ministério da
Educação. É de notar quanto a esta última matéria da reestruturação do
Ministério da Educação, que se resolveu depois deixá-lo de fora do estatuto,
continuando todavia a trabalhar-se nela como objeto de diploma a publicar
autonomamente, diploma de conjunto que se seguirá aos vários que vêm sendo
promulgados com a reforma de serviços antigos ou a criação de serviços novos…”,
procedimento que foi mantido pelo ministro Veiga Simão.
O Instituto de Ação Social Escolar é um bom exemplo para confirmar
a orientação, na medida em que, para o tempo, constituía do ponto de vista da
estrutura e do ponto de vista da missão uma inovação na estrutura orgânica do
Ministério da Educação.
É um serviço que tem afinidades de objetivos e funções com
instituições de solidariedade social, mas não prevê, no seu quadro de
funcionamento, para além de uma colaboração informal, outras formas de
participação ou colaboração com a sociedade civil.
As reuniões promovidas pelo Ministro da Educação com presidentes
de câmaras, com os reitores e diretores de escolas são um segundo exemplo para
definir uma noção de participação passiva, porque, na sua essência, são uma
forma de obter a cooperação e a adesão ao projeto na ordem constituída. Educados
para a passividade e no espírito de aceitação e de obediência, os corpos
sociais mais diretamente interessados na educação - pais e professores - não
marcam presença na decisão política, porque estão integrados numa ordem social
que vê, nos primeiros, fornecedores da “matéria-prima” e, nos segundos, os
agentes e instrumentos para levar a cabo uma política de desenvolvimento,
segundo orientações conformes às correntes de pensamento científico da época,
designadamente a teoria do capital humano (Denison, 1967; Becker, 1964).
Nos discursos do Ministro Veiga Simão, esta é uma ideia-força,
muitas vezes repetida, em situações diferentes e que, a título meramente
exemplificativo, citamos duas passagens: Num programa de ação, que o próprio
Ministro define como de inquietação, refere-se, em vários discursos, e nas mais
variadas circunstâncias, a este aspeto que exemplificamos, dando com exemplo as
seguintes frases”… trabalhemos para esse fim ignorando os que nada fazem e tudo
criticam, os que defendem interesses particulares que superam o interesse
geral, mantém situações de comodidade egoísta ou entravam seriamente a ação do
governo empenhado na resolução do problema educativo…” (Simão, 1973: 51-54).
“…No entanto reforma e métodos
são frontal ou capciosamente pelos que não suportam mudanças, muito embora
alguns não tenham a coragem de as criticar nos seus fundamentos, ou pelos que
sempre desejosos de implantar a sua ordem obedecem ao princípio de quanto pior
melhor. Uns e outros inimigos nas ideias unem-se nas críticas destrutivas das
reformas e alguns embora nada tenham feito para prestigiar as instituições, mas
muitas vezes contribuído para o seu descrédito desejam agora apresentar-se como
guardiões de valores que nunca foram postos em causa. (Simão, 1973:160).
4.1. A substituição de papéis: de objetos e agentes a sujeitos e atores
No entanto, com a queda do regime não democrático, a visão
política sobre o papel e ação dos principais intervenientes na Educação
alterou-se significativamente. Registamos três situações que refletem a
evolução do posicionamento dos intervenientes mais diretos no Sistema
Educativo:
1.º Registo – 13/4/ 1973 – A geração a que pertencemos
habituou-nos a não contestar e a não exigir: – solicita, aguarda e no fim se vê
definidas as suas pretensões agradece.
A geração
a que pertencemos quando reconhece que os ventos da história mudaram de direção
e alguém chegou a esta casa com intenção de colocar o professor – o principal
agente da educação e do ensino no seu devido posto não pode deixar de se regozijar
e de lamentar não ter nascido 20 anos depois…” In: Jornal O Século: Maria
Amélia de Matos Liceu D. Duarte em Coimbra, na audiência concedida pelo
Ministro da Educação, falando em nome de um grupo de professores que agradece a
concessão de diuturnidades.
2.º Registo – 23/71974 – Multiplicação de iniciativas,
experiências diversificadas, tantas vezes falta de normas, de rumos, conduziram
a decisões unilaterais, conduziram a exceder em muitos casos, a competência de
poderes que, normal e legitimamente, devem ser assumidos. Daí um certo espírito
de totalitarismo, ousemos dizê-lo de sinal contrário. A atitude de querer impor
aos outros os nossos pontos de vista, em vez de procurar persuadi-los, e de
dialogar realmente como é do autêntico espírito da democracia. É inaceitável
que se tomem decisões unilaterais. Elas devem resultar da conjugação de
esforços, da responsabilidade de quem deve tomá-las, ouvindo todos em franco e
aberto diálogo….
Há que
reformar o estatuto da função pública, admitindo a sindicalização de
professores e dos quadros de pessoal, que são interlocutores válidos e úteis
para todo o nosso trabalho mas que não podem confundir-se com órgãos de Poder
nem de exercício da administração.
A escola é uma associação, é uma
colaboração de professores e investigadores com estudantes e alunos, com todo o
pessoal.
Todos têm
que exercer as suas funções respectivas, que não devem confundir-se.
… E há o governo-geral
da escola em que os conselhos ou comissões eleitas desempenham um papel
primacial, comissões devidamente eleitas a partir de cadernos eleitorais feitos
com isenção, para as quais a votação se faça por escrutínio secreto, único que
é democrático; comissões portanto onde estejam representados os vários
elementos componentes da escola e se tracem as grandes linhas de orientação
dentro do contexto traçado pelo ministério que é o contexto da política
nacional ao serviço de todos os portugueses. Porque não podemos ter cada escola
como um feudo independente: a escola responde perante a Nação...
A este
Ministério compete assim coordenar todos os esforços e decidir, aprovar ou
rejeitar iniciativas, sempre aberto ao diálogo, à colaboração, às críticas
rudes que queiram fazer-lhe. Mas não sujeito a imposições, porque a imposição é
uma atitude fascista…
… Apelo
para a opinião portuguesa para que participem num grande projeto nacional de
educação nova e de criação de cultura … Vitorino
Magalhães Godinho – Ministro da Educação e Cultura, Declarações prestadas em
Conferência de Imprensa.
3.º Registo 23/10/1976 - “A escola sofreu nos
últimos anos o efeito da descompressão da vida política nacional, o que levou a
saudáveis atitudes de destruição de estruturas antigas, também fez ruir a
disciplina indispensável, para garantir o funcionamento de qualquer sistema
educativo…. É tempo colher a experiência com a necessária lucidez, separar a
demagogia da democracia e lançar as bases de uma gestão que, para ser
verdadeiramente democrática, exige a atribuição de responsabilidades aos
docentes, discentes e pessoal não docente na comunidade escolar... O conselho
diretivo dos estabelecimentos de ensino manterá estreitos contactos de
cooperação com as associações de estudantes e de encarregados de educação.
Decreto-Lei
n.º 769/A/76, de 23 de Outubro – Preâmbulo e artigo 52.
a) A voz autorizada da professora que fala em nome de uma classe,
onde o mal-estar se consente de forma obediente e conformista e se manifesta
para agradecer e aplaudir aquilo que não houve coragem para de outra forma
exigir;
b) A intervenção pública de um Ministro da Educação que denuncia
corajosamente uma situação de mal-estar e indisciplina e anuncia um projeto
nacional de educação democrática, reconhecendo o direito de associação de
professores e estudantes;
c) A voz do poder constituído, feita lei, que institucionaliza o
quadro legal e os instrumentos necessários à normalização e regulação de um
processo de participação que anteriormente se auto-organizara.
Estes textos permitem-nos distinguir vários momentos na evolução
do conceito primitivo de participação: passividade e legitimação das decisões
políticas, centralmente definidas; autogestão revolucionária e
representatividade e participação social.
4.2. Da cidadania representativa ao direito social de participação
A fase descrita no primeiro
texto traduz uma conduta social dos professores, inscrita num sistema de
relações, em que a intervenção destes nas decisões se mantém num plano
meramente funcional e desprovida de sentido político.
São agentes e reconhecem-se como tal. Trata-se de uma participação
funcional que se faz pela via formal-legal, no respeito pela ordem hierárquica
para pedir ou requerer o deferimento de necessidades ou pretensões ou para
responder, se questionados, a certas questões julgadas de interesse pela
tutela. Este quadro é destruído pela mobilização social, ocorrida no contexto
revolucionário de 1974, seguindo-se uma fase de participação intensa.
Foi o tempo da participação coletiva em assembleias gerais de
escola, de professores e de alunos (RGE’s, RGP’s, RGA’s) que se sucediam dia após
dia, auto designando-se e atuando como soberanas na resolução dos problemas da
escola, equacionados à luz de critérios ideológicos ou de lógicas de atuação de
orientação partidária.
Foi a tomada de poder por professores e alunos, a autogestão nas
escolas, sem, no entanto, esta tomada de poder significar uma vontade de
participar na decisão política ao nível da administração central, visto que, na
leitura que fazemos pela vivência do processo, utilizamos o termo auto organização
com duplo sentido: na aceção que lhe é dada na linguagem comum e científica.
Sob o ponto de vista dos professores, auto-organização significa que, no
sistema de gestão, cada participante é também um gestor. A hierarquia é
substituída pela heterarquia ( organização
social descentralizada entre iguais) no princípio de comando potencial, a autoridade pela
informação. A auto-organização, no sentido de desorganização, de crise de
valores de normas, de coletividades ou de papéis (Touraine, 1993: 185)
significava mais uma reação contra as estruturas de dominação na escola que
representavam o regime deposto e uma contestação por motivos ideológicos das
medidas tomadas pelo Ministério da Educação.
Professores e alunos assumem o papel de atores principais, num
sistema fechado, apesar de, neste período se encontrarem ativos e atuantes
grupos sociais, como as comissões de moradores, tribunais populares, comissões
de saneamento. A escola se solidariza com as tomadas de posição de
trabalhadores em luta e aprova moções de apoio e solidariedade nas suas
assembleias, mas permanece uma comunidade escolar corporativamente fechada à
participação de atores sociais, mesmo dos mais próximos, isto é, os pais e
encarregados de educação.
Os professores e as estruturas sindicais que os mobilizavam, agem,
politicamente, mais por motivações ideológicas e por motivos profissionais e
funcionais. Não há notícia de uma contestação coletiva contra a estrutura
burocrática e centralizada do Ministério da Educação.
A organização do sistema é aceite como uma fatalidade. A
contestação dirige-se à atuação e orientações políticas do ME, sem a exigência
de uma participação institucional nas macro decisões. No coletivo de cada
escola, decide-se sobre a alteração de programas e delibera-se sobre questões
do funcionamento da escola, porque os acontecimentos se precipitam num círculo
vertiginoso de mudança que o ministério não acompanhava.
A investigação sobre a participação
dos pais e encarregados de educação permite a compreensão do comportamento da
sociedade portuguesa, quanto à participação social, já que, o governo desempenha um papel de facilitador da participação, sem que
esta tenha atingido níveis e formas de intervenção política suscetíveis de se
identificarem intervenções de fundo, vindas de baixo para cima, invertendo ou
modificando a agenda política educativa.
Sobre esta matéria, Rogério Fernandes, diretor geral à data
testemunha “… Assim, ao ocorrer o 25 de Abril de 1974, as instituições
educativas tinham-se tornado um dos terrenos mais conflitivos da sociedade
portuguesa, não apenas como epicentro de movimentos reivindicativos mas também
como terreno onde se esboçavam propostas educacionais alternativas de
modernização. Entre elas, a primeira experiência de acesso ao poder e ao
exercício do controlo institucional pelos professores, isto é a destituição de
reitores e diretores de estabelecimentos oficiais e a sua substituição por
comissões diretivas provisórias com as quais se iniciou o processo de gestão
democrática…
A necessidade de instituir as regras do jogo democrático que a
intervenção do ministro explícita e concretiza com detalhe, no segundo registo,
marca o começo de uma outra fase de participação.
Pode
dizer-se que a participação passa da fase de auto-organização para uma fase de
regulação pela ação crítica institucional (Touraine 1993) que surge, da parte
da tutela, numa situação de bloqueio da administração central, de uma hegemonia
dos professores, na condução dos processos de gestão e mudança e numa crise
organizacional de falta de autoridade.
Essa ação
manifesta-se pela publicação de dispositivos legais (D.L. n.º 221/74; D.L. n.º
735/A/74), que regulam o sistema por retroação, isto é, a lei vem consagrar
situações de facto, introduzindo, a partir delas e apesar delas, uma nova ordem
(note-se que as assembleias gerais não são consagradas na nova lei. A paridade
entre docentes e discentes nos órgãos de gestão é substituída pela
representatividade proporcional, no sistema de relações e, no eixo
autonomia/dependência, a tensão entre a emancipação e a regulação pende a favor
da regulação).
Os novos órgãos de gestão colegiais instituídos (comissões de
gestão) nem sempre funcionam e apresentam dificuldades de implantação que são
resolvidas pelo Ministério da Educação com a nomeação de órgãos unipessoais
(encarregados de gestão) em muitas situações e até, como já escrevemos em outro
lugar, acontece a nomeação de gestores militares para as escolas que, na
avaliação do Ministério da Educação, estavam desgovernadas.
O terceiro registo representa a recuperação da legitimidade e da
autoridade do Ministério da Educação. É o retomar da regulação burocrática do
sistema, que ocorre em 1976, com a publicação do diploma da gestão (D.L. n.º
769/A/76) e com cuja aplicação a escola, acompanhando aliás o contexto social e
institucional geral do País, tende a integrar-se num período de normalização
(Ambrósio, 1992). Quando a Lei de Bases do Sistema Educativo institui a
participação de atores sociais, decorrera já um período de dez anos de
experiência, sedimentação e interiorização de uma cultura de democracia
representativa.
Os atores sociais educativos (pais, professores, alunos) já tinham
assegurado de jure e de facto o seu papel de atores na administração do sistema
pela representatividade nos órgãos e estruturas da escola (Conselho Diretivo,
Conselho Pedagógico, Conselhos de Turma, Conselhos Disciplinares). Os
professores tinham assumido, por eleição, cargos nos diversos domínios de
gestão. Os pais já se haviam organizado e constituído em associações e confederações
desde 1977 e tinham assento em órgãos da escola, o mesmo acontecendo com a
representação do pessoal não docente.
Sem comentários:
Enviar um comentário