Ficha de
Leitura/Ficha Resumo
Almeida, Ana Patrícia, Os fluxos
escolares dos alunos como analisador dos modos de regulação local do Sistema
Educativo, (2005). Lisboa: FPCE (Dissertação de Mestrado)
1.A
regulação das políticas educativas
1.1.
A
noção de regulação
Noção
de Regulação - “Operações que permitem o melhor resultado ou a melhor
utilização e combinação dos esforços conjuntos perante um objetivo, para o
atingir nas melhores condições e com o menor esforço” - Grande Dicionário da Língua
Portuguesa (1981).
A
noção de regulação é utilizada numa conceção normativa, “para designar o
ajustamento, em conformidade com uma regra, por mecanismos de controlo que
mantêm constantes certos parâmetros ou corrigem certos parâmetros em função da
norma fixada” (TERSSAC, 2003, p. 11).
São
várias as perspectivas e sentidos existentes do conceito de regulação, que
resultam da adoção de referenciais teóricos e disciplinares diferentes. É neste
contexto que DELVAUX (2001) ensaia uma primeira análise conceptual do termo,
procurando identificar, os elementos comuns e distintos nas diferentes
definições de regulação e compreender o que conduz à emergência deste conceito
no domínio educativo.
O
autor identifica duas linhas de definição do conceito de regulação:
-
a linha cibernética;
-
a linha
organizacional.
Ambas
inspiradas na
sociologia das organizações. A primeira coloca a ênfase nas condições que
permitem o equilíbrio e coerência dos sistemas “a regulação é muito
simplesmente aquilo que permite ao sistema funcionar e se transformar” e
neste sentido, “permite compreender como e porquê um conjunto de elementos,
de ações ou de indivíduos se organizam no seio de uma entidade global com o fim
de prosseguir uma certa finalidade” (DIEBOLT, 2001, p. 5). É através dos
órgãos reguladores que o sistema identifica as perturbações, analisa e trata as
informações relativas a um determinado estado de desequilíbrio e transmite um
conjunto de ordens a um ou vários dos seus órgãos executores, por forma a
assegurar a sua estabilidade e o seu desenvolvimento coerente (BARROSO, 2001).
Estabilidade e equilíbrio que é reposto tendo por base o princípio de retroação,
“em que os órgãos ativos vão exercer uma série de ações em retorno sobre as
causas de perturbação a fim de estabelecer o equilíbrio no sistema” (DIEBOLT,
2001, p. 6).
Os
limites desta perspectiva, aplicada ao sistema social, situam-se, segundo
Crozier e Friedberg (1977) no facto de o modelo subjacente à analogia
cibernética ser um “modelo que ignora a dimensão estratégica,
irredutivelmente imprevisível, do comportamento humano” (p. 245-246).
Segundo estes autores, “nos sistemas humanos que chamamos sistemas concretos
de ação, a regulação não se opera, de facto, nem por sujeição a um órgão
regulador, nem pelo exercício dum constrangimento mesmo que inconsciente, e muito
menos por mecanismos automáticos de ajustamento mútuo, ela opera-se por
mecanismos de jogos através dos quais os cálculos racionais „estratégicos‟ dos
atores se encontram integrados em função de um modelo estruturado. Não são os
homens que são regulados e estruturados, mas os jogos que lhes são oferecidos”
(p. 284-285).
Na
linha organizacional, é dado um “lugar privilegiado ao ator e ao
contexto que constitui a definição da norma” (DELVAUX, 2001, p. 8). Aqui,
importa a análise das estratégias, dispositivos e arranjos institucionais
colocados em ação pelos atores ou pelos grupos de atores para resolver os
problemas no interior de sistemas complexos (DUTERCQ e VAN ZANTEN, 2002). Nesta
perspectiva, como referem MAROY e DUPRIEZ (2000) “a regulação é a resultante
da articulação (ou transação) entre uma ou várias regulações de controlo e
processos „horizontais‟ de produção de normas na organização. A regulação é
entendida, no sentido ativo de processo social de produção de, regras do jogo‟
permitindo resolver problemas de interdependência e de coordenação” (p.
76).
Esta
aceção vai de encontro ao que é proposto, pelo autor da teoria da regulação
social, Jean-Daniel REYNAUD, que considera a
regulação como um confronto entre duas fontes de regras, entre uma ‘regulação
de controlo’ e uma ‘regulação autónoma’. “O que se confronta não são só
os interesses, mas as pretensões às regras, as vontades de regulação. Uma das
partes detém na prática o anúncio e a execução. A outra procura fazer valer as
práticas informais, as redes clandestinas de cumplicidades, ou melhor, a
introduzi-las na organização oficial e pelo menos a fazê-las respeitar. É
cómodo apresentar este encontro como o de duas regulações, uma regulação de
controlo e uma regulação autónoma” (Reynaud citado por TERSSAC, 2003, p. 37) ”.
Ou
ao que é defendido por teóricos da sociologia das organizações, como FRIEDBERG
(1995)
“...
a regulação operada pela estrutura formal nunca é total. É constantemente
extravasada por um conjunto de práticas que não respeitam as prescrições que
ela promulga. Através destas práticas, os participantes, em função da sua
perceção dos constrangimentos como recursos da situação, procuram, e a maioria
das vezes com êxito, corroer pouco a pouco a consistência do quadro formal e
deslocar ou limitar a sua validade, que o mesmo é dizer, subverter por completo
as sequências teóricas.” (p.
147).
De
facto, insiste FRIEDBERG (1995), “um
grande número de contextos de ação, nos domínios mais diversos, são de facto
estruturados e regulados por uma combinação de regras, de dispositivos, de
mecanismos, de convenções e de contratos formais e informais, explícitos e
implícitos; em todos, a «regra constitucional» apoia uma «prática
constitucional» que se afasta da primeira ao mesmo tempo que a apoia, que a
enfraquece em certos pontos ao mesmo tempo que a reforça noutros, e vice-versa”
(p. 153-154).
Por
tudo isto, importa, na análise da regulação dos sistemas educativos, ter em
conta as três dimensões de que fala REYNAUD (1997; 2003):
a)
a regulação de controlo, definida
como o “conjunto de ações decididas e
executadas por uma instância para orientar as ações e as interações dos atores
sobre os quais detém uma certa autoridade” (MAROY e DUPRIEZ, 2000, p. 76);
b)
a regulação autónoma, entendida como
um processo ativo de produção de ‘regras de jogo’, que “compreende a definição de regras (regras, injunções, constrangimentos,
etc) que orientam o funcionamento do sistema, mas também, o seu (re)ajustamento
provocado pela diversidade de estratégias e ações dos vários atores, em função
dessas mesmas regras” (BARROSO, 2004),
c) a
regulação conjunta, definida como a
interação entre os outros dois tipos de regulação, tendo em vista a produção de regras comuns (REYNAUD, 2003).
É
nesta perspectiva, aliás, que BARROSO
(2001) afirma que a regulação (do
sistema educativo) não é um processo único, automático e previsível, mas sim “um
processo compósito que resulta mais da regulação das regulações, do que do
controlo direto da aplicação de uma regra sobre a ação dos regulados”
(p. 7).
Aplicando, assim, o termo de regulação à coordenação dos sistemas educativos, o que
se pode concluir:
a)
como processo constitutivo de qualquer
sistema, a regulação tem como principal função assegurar o equilíbrio, a
coerência e a transformação do sistema;
b) compreende a
produção de regras, que orientam o funcionamento do sistema, mas também o
(re)ajustamento das várias ações dos atores, em função dessas mesmas regras;
c) baseia-se na
complexidade e incerteza, próprias de um sistema onde existe uma pluralidade de
fontes, de finalidades e sentidos e onde concorrem diferentes lógicas de ação (BARROSO, 2001).
A
introdução do conceito de regulação no domínio educativo insere-se, num
contexto de rutura com os trabalhos sociológicos anteriores. Por um lado, é
dada uma grande importância aos atores, no entendimento de que “toda a
pessoa ou organização implicada num sistema joga ou pode jogar um papel no
funcionamento do sistema” (DELVAUX, 2001, p.4) e que a organização do
sistema não depende somente das injunções de autoridade, mas também das
iniciativas tomadas pelos atores desse mesmo sistema. Por outro lado, é
manifestado um grande interesse pela decomposição ‘minuciosa’ dos processos em
que se enquadram as ações. A explicação dos fenómenos sociais não se limita à
análise de fatores macrossociais, mas baseia-se na análise minuciosa dos processos
por intermédio dos quais esses mesmos fenómenos se realizam. Emerge, desta
forma, quer o carácter não imutável dos sistemas, quer a complexidade, devida à
variedade de fatores e atores que concorrem para a regulação do sistema.
Mas,
segundo DELVAUX (2001) o aparecimento do conceito de regulação no domínio
educativo resulta das “transformações que aparecem recentemente em matéria
de intervenção das autoridades públicas” (p. 5). Com efeito, o aparecimento
do conceito de regulação no campo da educação tem, segundo Barroso et al
(2002b), “origem e sentidos diferentes segundo os contextos políticos e
linguísticos de referência” (p. 14). De acordo com estes autores, é
possível identificar dois contextos principais no que respeita à utilização do
conceito no domínio educativo. Um
primeiro cuja utilização se encontra associado ao debate sobre a reforma da administração pública da
educação e sobre a sua modernização.
Assim, a referência ao termo ‘regulação’ aparece com o “objetivo de reforçar
a imagem de um Estado menos prescritivo e regulamentador e de uma, nova
administração pública‟ que substituiu um controlo direto e a priori sobre os
processos, por um controlo remoto e a posteriori baseado nos resultados” (p.
14), pressupondo a existência de unidades autónomas no sistema.
Num
segundo contexto, a utilização do
termo regulação aparece associado a
um outro conceito, o de desregulação.
Ou seja, aqui o que está em causa não é uma simples mudança no papel regulador
do Estado, mas sim uma substituição (parcial) de uma regulação do Estado por
uma regulação de iniciativa privada, nomeadamente, através da criação de
quase-mercados de educação (Barroso et al, 2002). Neste contexto, o Estado
torna-se altamente permeável à adoção de lógicas e valores de mercado, “circunscrevendo
mais o seu âmbito de atuação e privatizando serviços públicos, favorecendo na
mesma organização a coexistência de serviços públicos e privados, ou adotando
modelos de gestão não compatíveis com a preservação dos valores próprios do
domínio público” (AFONSO, 2002a, p. 86).
1.2.
As reformas da educação pública e a redefinição do papel do Estado
As
décadas de 80/90 foram palco de grandes mudanças políticas, económicas e
culturais em diversos países. Com efeito, as reformas no domínio da
administração pública, nomeadamente da educação, surgem, neste período, como “tecnologias
da mudança social” (LIMA e AFONSO, 2002) que procuram a reorganização da
vida social “com base na revalorização da racionalidade económica e
empresarial, na procura de vantagens competitivas, no protagonismo das
organizações produtivas e dos seus respetivos critérios de gestão eficaz e
eficiente em contextos de mercado, na perda da centralidade do trabalho, na
estruturação de grande parte dos direitos referenciáveis ao modelo de
Estado-Providência” (LIMA e AFONSO, 2002, p. 7). Assiste-se a uma ‘revolução
semântica’, onde prevalecem os discursos e as preocupações sobre a eficácia e
eficiência, os padrões de qualidade, a formação para o trabalho, em que “o
binómio educação/modernização do tecido produtivo” ocupa o lugar do “binómio
educação/democracia” (Correia, 2000). Fruto destas solicitações, os Estados
empenham-se em complexos processos de reestruturação e transformação por forma
a responderem com eficácia quer aos problemas internos de desenvolvimento
económico quer às pressões externas associadas à globalização económica e
política. Esta reestruturação dos Estados envolve, uma “transformação dos
mecanismos de governo e de governação, (…) sustentados pelos princípios neoliberais:
liberalização do mercado, privatização, internacionalização, reestruturação dos
mercados de trabalho, para uma maior flexibilidade na utilização da
mão-de-obra, aumento de produtividade e capacidade de resposta aos mercados” (ROBERTSON
e DALE, 2001).
Compreender
o sentido das reformas educativas durante as décadas de 80/90 e a consequente
alteração e redefinição do papel do Estado, implica inserir estas reformas num
determinado contexto histórico e social e implica, considerá-las como parte do
processo de regulação social onde “os múltiplos elementos produtores de
poder (...) ordenam e regulam como se deve contemplar o mundo, atuar sobre ele,
sentir e falar sobre ele” (Popkewitz citado por BENTO, 2001, p. 60). Por
último, implica perceber em que ‘ciclo’ se enquadram, considerando o que nos
dizem Carnoy e Levin (citados por AFONSO, 2000) acerca da existência de “uma
luta permanente entre forças que pressionam num sentido de uma maior democracia
e igualdade na educação e forças que pressionam no sentido de uma maior
eficiência na reprodução das habilidades e personalidades requeridas pelo
capitalismo” (p. 59). Este período é característico de um ciclo de reformas
com cariz neoliberal que privilegiam a ‘modernização’, a ‘qualidade’, a
‘competição’ em detrimento das exigências de ‘democracia’ e ‘igualdade de
oportunidades’ (BARROSO, 2003b), constituindo, mesmo, segundo alguns autores,
um “período recessivo para os movimentos sociais e progressistas na educação
e na política” (GIMENO SACRISTÁN, 1997).
A crise do
Estado-providência
Criado
sobre o signo de um compromisso entre o Estado, o Capital e o Trabalho, “nos
termos do qual os capitalistas renunciam a parte da sua autonomia e dos seus
lucros e os trabalhadores a parte das suas reivindicações” (SOUSA SANTOS,
1987, p. 14), sendo esta dupla renúncia gerida pelo Estado, o Estado-Providência
assenta na ideia de compatibilidade e complementaridade, entre crescimento
económico e políticas sociais, entre acumulação e legitimação e entre “capitalismo
e democracia” (SOUSA SANTOS, 1987, p. 16). O Estado afirma-se, neste
contexto, “portador do interesse geral, acima e além dos interesses
particulares das diferentes classes sociais” (SOUSA SANTOS, 1987, p.15).
Durante
o período de vigência do chamado Estado-Providência, em que imperou o paradigma
burocrático, que promovia uma organização que exigia precisão, rapidez,
regularidade, fiabilidade e eficiência, mediante a criação duma divisão precisa
de tarefas, supervisão hierárquica e regras e regulamentos bem definidos, a
adoção de políticas económicas keynesianas tiveram como consequência um crescimento
económico sem precedentes. Crescimento económico que permitiu, como recorda
AFONSO (1998) “ao longo de aproximadamente três décadas, assegurar (quase) o
pleno emprego, manter uma inflação baixa e alargar o acesso a determinados bens
e serviços considerados como direitos sociais” (p. 138).
De
facto, “O elevado grau de coesão social destas décadas é atribuído, por
alguns autores, à existência de uma cultura comum, que tem como alicerce a
racionalidade técnica,.. A conflitualidade, sempre latente entre capital e
trabalho, foi «travada» pela ênfase dada a esta racionalidade, baseada na
definição hierárquica dos papéis, quer no local de trabalho, quer em casa..(Halsey
et al., 1997:2)” (BÓIA, 2003, p. 30)
É neste contexto,
que o papel da escola assume uma grande importância, na medida em que esta constitui o principal promotor da cultura
comum, forjada pelo Estado-Nação, compreendendo-se, assim, o grande empenho dos governos na criação de sistemas
educativos nacionais que formassem profissionais e disseminassem a cultura
nacional, inculcando a noção de
nação, “fundamental para a tão necessária coesão social” (Green
citado por BÓIA, 2003, p. 31). Vista como um
bem público e um direito dos cidadãos, a educação constitui, também, um
investimento estratégico na promoção da justiça social e do crescimento
económico.
O
modelo de Estado-Providência constitui, de facto, numa fase de expansão
capitalista a “fórmula encontrada em muitos países para a gestão das
contradições” (AFONSO, 1998, p. 137). Contradições, no entanto, que acabam
por aumentar fruto das diferentes solicitações que são feitas ao Estado:
“a)
necessidade de apoiar o processo de acumulação;
b)
necessidade de garantir o contexto de acumulação;
c)
necessidade de legitimação, quer do modo capitalista de produção, quer da sua
participação neste último” (Dale;
Dale e Ozga citados por AFONSO, 1998, p. 137).
Com
efeito, “Sendo que as (sempre
provisórias) soluções encontradas num determinado momento para atender às
exigências de acumulação são também (frequentemente) contraditórias com as
necessidades de legitimação, o Estado acaba por se envolver numa crise
estrutural que se vai agravando à medida que, perante as crescentes exigências
que sobre ele pesam, se verifica “uma tendência para as despesas públicas
crescerem mais rapidamente do que os meios de financiá-las” (O‟Connor, 1977, p.
22)”. (AFONSO, 1998, p. 137-138) .
No
início dos anos 70, na sequência do choque petrolífero de 1973, o ritmo de
crescimento económico desacelera, o que conduz à revisão do modelo keynesiano
em que assenta o Estado-providência, fazendo emergir as contradições e
limitações deste modelo. O Estado, pela sua incapacidade de adaptação a
situações novas e de resposta às novas solicitações, passa a ser entendido como
um ‘empecilho’. Por outro lado, as ‘falsas esperanças’ alimentadas durante a
vigência do Estado-providência, como, por exemplo, o otimismo associado à
hipótese de mobilidade social através da educação, também concorrem para o
abalo da solidez deste modelo.
Mas,
o que caracteriza, de facto a crise do modelo de Estado-providência?
Ao
analisar as tendências de crise específicas dos sistemas capitalistas, Habermas
propõe quatro tendências possíveis de crise, com origem em diferentes pontos do
sistema. Fala-nos, assim de uma:
-
crise económica, que tem como
ponto de origem o sistema económico. Este é um tipo de crise que os sistemas
capitalistas sofrem de uma forma periódica e que procuram resolver através de “tarefas
de apoio ao processo de acumulação” (AFONSO, 1998, p. 142);
-
crise de racionalidade com
origem no sistema político e que se expressa pela incapacidade do sistema
administrativo responder de forma adequada às solicitações do sistema
económico;
-
crise de legitimação também
originada pelo sistema político, que expressa a falta de apoio do povo ou como
diz Hubermas, a falta da “lealdade das massas” (citado por AFONSO, 1998,
p. 142);
-
crise de motivação, que tem
como ponto de origem o sistema sócio-cultural .
No
contexto das recentes transformações vividas pelos Sistemas Educativos, que
situam a escola „entre o local e o global‟,João Barroso (1999), fala de
uma crise de legitimidade, de governabilidade e de modelo.
Crise de legitimidade, que está associada ao facto de vários movimentos
sociais reivindicarem “uma maior interferência e iniciativa da sociedade
local na definição das políticas educativas e no governo das escolas” (p.
130), colocando em causa o modelo de Estado-Nação e a função de
Estado-educador, que está na base da criação da escola pública e que se
caracterizava por um forte consenso social no valor da educação e nas
modalidades de organização da escola.
Uma
crise de governabilidade, no sentido em que, com o crescimento e
complexificação dos sistemas educativos, o Estado demonstra dificuldade em se
renovar e dar resposta às novas solicitações. Desta forma, “os resultados
alcançados ficam sistematicamente aquém das expectativas e a confiança na
capacidade dos poderes públicos resolverem os seus problemas vem-se reduzindo
de maneira notória” (p. 130). Finalmente, uma crise de modelo, que
se revela inadequado para dar resposta às características de uma população
escolar cada vez mais heterogénea e às necessidades de alteração ao nível da
relação pedagógica e de maior abertura da escola ao meio.
O
modelo de Estado-providência e todas as suas lógicas – políticas, culturais,
económicas, entram, assim, em rutura e é neste cenário de crise que se cria um
campo propício à emergência de uma doutrina neoliberal, que questiona o
Estado-Providência e cujo grande objetivo consiste em reduzir o mais possível o
campo de atuação do Estado.
A influência da
Nova Direita no contexto geral das reformas educativas
Nos
países capitalistas centrais, as décadas de 80/90 caracterizam-se pela
emergência das políticas da chamada Nova Direita, cuja coligação entre
vetores liberais e conservadores determinam estratégias políticas e económicas “que
visam a revalorização do mercado, a reformulação das relações do Estado com o
sector privado, a adoção de novos modelos de gestão pública preocupados com a
eficácia e a eficiência e a redefinição dos direitos sociais” (AFONSO,
1998, p. 139).
As políticas
educativas da Nova Direita
são marcadas,
segundo Gamble (citado por AFONSO, 1999, p. 141) por uma singularidade própria,
na medida em que combinam a defesa da
livre economia, de tradição liberal, com a defesa da autoridade do Estado, de tradição conservadora.
Temos,
assim, políticas neoliberais, cuja ‘pedra angular’ é a noção de mercado e que
se identificam com os “princípios de privatização, globalização, livre
escolha”, que servem de “argumento para a eficiência, a qualidade e a
equidade” (PACHECO, 2000, p. 9). Nesta perspectiva, o Estado, considerado
como um obstáculo, deve reduzir-se ao mínimo dado que não é capaz de responder
de forma adequada às solicitações da sociedade, tendo em conta o descrédito que
rodeia o sector público. As políticas neoliberais são, caracterizadas como
políticas de livre mercado “que encorajam a empresa privada e a opção do
consumidor, recompensa a responsabilidade individual e a iniciativa pessoal e
procuram destruir a mão morta do governo incompetente, burocrático e parasitário...”
(McChesney, citado por APPLE, 2003, p. 21). Por seu lado, as políticas
neoconservadoras, marcadamente regulamentadoras, reclamam um Estado interventor
no controlo da autoridade, na preparação dos cidadãos para o mercado de
trabalho e na aprendizagem de “conhecimentos, normas e valores corretos” (APPLE,
1998, p. 4). Desta forma, entre as políticas que têm sido propostas por esta postura
ideológica, no domínio educativo, estão “os currículos obrigatórios no nível
nacional e estadual, provas no nível nacional e estadual, um retorno‟ a um
padrão de qualidade melhor, uma revivificação da tradição ocidental‟,
patriotismo e variantes conservadoras da educação do carácter” (APPLE,
2003, p. 57).
As
contradições entre os vetores neoconservadores e neoliberais da Nova Direita
são resolvidos através de uma política que Roger Dale chama de modernização
conservadora, que procura: “«libertar» os indivíduos para fins
económicos e, simultaneamente, controlá-los para fins sociais; de facto, na
medida em que a «liberdade» económica aumenta as desigualdades, é provável que
aumente também a necessidade de controlo social. Um «Estado pequeno e forte»
limita o âmbito das suas atividades, transferindo para o mercado, que ele
defende e legítima, tanta responsabilidade, sobre a segurança social (e outras
atividades), quanto possível. Na educação, a recente crença na competição e na
escolha não é inteiramente difundida; em vez disso, «o que se pretende é um
sistema duplo, polarizado entre escolas de mercado e escolas mínimas» ” (citado
por APPLE, 1999, p. 59).
A
doutrina da Nova Direita, vigente a partir da década de 80 extravasa,
então, o âmbito da economia e passa a condicionar outros domínios da atividade
humana. É, neste contexto, que “o consenso alargado, em torno da educação, é
quebrado” e que os governos da Nova Direita, não se revendo no
legado do Estado-Nação, elegem como prioridade “o desmantelamento dos
pilares do Estado-providência, particularmente no campo da saúde e da educação,
no seu entendimento, a fonte de todos os males” (BÓIA, 2003, p. 89). Como
recorda APPLE (2002), “A educação entrou num período de contestação. As
instituições são vistas como tendo fracassado totalmente. Os elevados
„standards‟, o declínio da literacia funcional‟, a perda de níveis e da
disciplina, o fracasso em se obter o conhecimento real‟ e as destrezas
economicamente úteis…, entre outras acusações, têm incidido sobre as escolas.” (p.
56).
Com
efeito, neste período um número cada vez maior de empresários começa a acusar a
escola de não cumprir as funções que lhe estavam cometidas e de contribuir para
o crescente desemprego juvenil, não dando resposta às necessidades de formação
do campo empresarial. Neste cenário de crise, quer económica quer de desemprego
generalizado, as críticas foram, paulatinamente encontrando eco junto de
sectores cada vez mais vastos da sociedade civil.
Fruto
do descontentamento popular, a Nova Direita tira partido da situação e
promove as suas políticas educativas, fazendo uso de três ‘chavões’
especialmente atractivos (Lauder citado por BÓIA, 2003, p. 84): escolha («choice»),
diversidade («diversity») e excelência («excellence»). A única
saída consiste, na opinião dos promotores deste tipo de política, em basear a
educação numa democracia de mercado que aposta na descentralização, na
autonomia e na liberdade do consumidor poder escolher livremente a entidade
(escola) prestadora de serviços.
Aliás,
como afirma o Presidente do Forum para a Liberdade da Educação, Fernando Adão
da Fonseca (2003), referindo-se à situação nacional, “a principal causa do
relativo atraso cultural, social e económico de Portugal é a ausência de uma efetiva
liberdade de educação”, sendo que o que se pretende é “desintoxicar os quadros
mentais que, durante anos e anos ... foram amordaçando o pensamento e o coração
dos portugueses...” (p. 16). Na sua perspectiva, ao conferir liberdade
de educação, é possível:
“-
garantir a TODAS as escolas a necessária autonomia para diversificarem os seus
projetos educativos e, obviamente, por eles serem efetiva e inequivocamente
responsabilizadas;
-
assegurar a TODAS as famílias a possibilidade de optarem livremente entre
qualquer das escolas, sejam estatais ou não estatais e sem limitações geográficas
ou de qualquer outra natureza, o que passará, obrigatoriamente e entre outras
alterações, por uma total revisão das atuais formas de financiamento da
EDUCAÇÃO;
-
conferir a TODAS as escolas que satisfizerem os requisitos de ensino a que o
Estado está constitucional e civilizacionalmente obrigado ... exatamente os
mesmos apoios e exigências, sem qualquer tratamento diferenciado em função da
entidade titular ou do seu estatuto jurídico” (FONSECA, 2003, p. 17).
O projeto político
da Nova Direita passa, assim, por promover a cultura empresarial no
campo educativo; por advogar a limitação do poder central das burocracias
educativas e fomentar a autonomia institucional das escolas, através da
implementação da gestão corrente local e descentralização administrativa; e,
ainda, promover a ‘liberdade da educação’ colocando a tónica no direito dos
pais/famílias poderem escolher livremente a escola para os seus
filhos/educandos e na promoção da concorrência entre instituições.
Salientam-se,
no ideário educacional da Nova Direita:
-
a preocupação com a avaliação, utilizada como “meio de racionalização
e como instrumento para a diminuição dos compromissos e da responsabilidade do
Estado”, servindo como “instrumento de desregulação social e ... forma
de introduzir uma lógica de mercado na esfera do Estado e da educação pública” (AFONSO,
2000, p. 50);
-
as preocupações relacionadas com o currículo, através da adoção de um
discurso pedagógico retrospetivo, baseado na “revalorização do
predomínio segmentador das disciplinas, mas, igualmente, na defesa de uma
formação moral assente nos valores também eles „tradicionais‟” (BENTO,
2001, p. 61). É tendo como base este discurso pedagógico retrospetivo que
muitas reformas curriculares europeias, mantêm e reforçam o modelo de
organização disciplinar, valorizando disciplinas como a Matemática e a língua
materna e que são influenciadas pela abordagem da ‘educação do carácter’ na
conceptualização e operacionalização de disciplinas de educação para a
cidadania ou de formação pessoal e social (BENTO, 2001);
-
a mudança nas políticas de administração e gestão dos estabelecimentos de
ensino. A este propósito, BALL (1990) refere que o discurso da gestão assumiu
um papel central na reforma em Inglaterra, procurando: pôr ordem onde
predominava o caos, implantar a racionalidade onde predominava a
irracionalidade e promover a eficiência e a eficácia onde havia ineficiência e
desperdício;
-
a tentativa de redução da formação dos professores às componentes
curriculares da especialidade. Como assinala, por exemplo, BALL (1990), quando
se refere à reforma inglesa, e tendo em conta que os professores são vistos
como complacentes e exclusivamente motivados por interesses próprios, “as
áreas de decisão relacionadas com o currículo, pedagogia… que anteriormente
teriam sido preocupação dos professores, são agora decididas noutra instância” (p.
51).
-
a promoção da liberdade de educação, através de políticas que, baseadas
na democracia do mercado, apostem na descentralização, autonomia e liberdade do
consumidor poder escolher livremente a entidade (escola) prestadora de
serviços. Chubb e Moe (1990), conhecidos defensores dos ideais neoliberais,
argumentam que a promoção do livre funcionamento do mercado, através da
devolução aos pais da liberdade de escolha, é a única saída para a melhoria dos
serviços prestados pelas escolas. Nesta perspectiva, defendem que o controlo
pelo mercado conduz a melhores resultados académicos e educacionais do que o “controlo
político democrático” a que estão sujeitas as escolas públicas. Para estes
autores, o problema das escolas da rede pública é que estão sujeitas a um sistema
político que promove a hiper-burocratização, enquanto que no caso das escolas
privadas “a sociedade não as controla diretamente através de políticas
democráticas” mas “controla-as (indiretamente) através do mercado” (CHUBB
e MOE, 1990, p. 27).
No
contexto de um projeto político neoliberal e neoconservador, o Estado passa,
então, a ter uma nova função de regulação. Como assinala Clementina
MARQUES CARDOSO (2003), “este tipo de Estado delega poder, autoridade e
responsabilidades aos pais enquanto indivíduos e às comunidades empresariais;
reduz a parcela dos professores no processo de decisão e o seu contributo na
definição das prioridades educativas. Ao mesmo tempo que mantém o seu papel de
monitorização dos resultados e atua como um intermediário entre professores e
pais. Este Estado define prioridades e metas para a obtenção de resultados de
forma a garantir o cumprimento eficiente dos objetivos definidos a nível
central e a fazer a auditoria em representação dos pais.” (p. 168).
Este
tipo de Estado continua, “apoia-se também num sistema de quase-mercado,
do tipo descrito por Le Grand que sustenta que são ‘mercados’ porque substituem
os fornecedores competitivos independentes e ‘quase’ porque diferem dos
mercados convencionais no que toca à oferta e no que toca à procura. No que
toca à oferta, como os mercados convencionais, existe competição entre
entidades prestadoras de serviço, mas estas não são necessariamente privadas
nem procuram necessariamente a maximização dos lucros (DALE, 1994). Quanto à procura,
o poder de aquisição por parte do consumidor não é expresso em termos de
dinheiro, mas sim através de um “orçamento designado ou através de um
„cheque‟” (Le Grand citado por MARQUES CARDOSO, 2003, p. 169). Estes
‘quase-mercados’ diferem, assim, dos mercados convencionais em três aspetos
fundamentais: “organizações não lucrativas competindo por contratos públicos
por vezes em concorrência com organizações lucrativas; o poder de aquisição do
consumidor sob a forma de vouchers mais que numerário; e, em alguns casos, os
consumidores representados no mercado por agentes em lugar de atuar por si
mesmos” (Le Grand citado por DALE, 1994, p. 119).
A reforma educativa
das décadas de 80-90: a particularidade do caso português
Como
assinala MARQUES CARDOSO (2003), “em termos de forma, e sem atender aqui às
diferenças nacionais de impacto3, as reformas de ensino pretenderam introduzir
mudanças que facilitassem e encorajassem os seguintes quadros de referência
para o governo e gestão públicos em geral e educacionais em particular:
-
uso de instituições e práticas privadas como referência na definição de
prioridades e nos processos de decisão;
-
supremacia dos princípios e mecanismos de mercado sobre os princípios de
cidadania, escolha e mecanismos de aprovisionamento e financiamento
democráticos;
-
seleção de escolas pelas famílias, seleção de alunos pelas escolas e segregação
curricular;
-
liderança individual, iniciativa empresarial e competição são utilizados como
modelos de conduta profissional, para as relações de escola e inter-escolas;
-
supremacia dos princípios empresariais sobre os princípios educacionais; e
predominância dos critérios financeiros sobre os critérios educacionais.” (p. 183).
Mas,
como alertam Stoer e Afonso há que considerar as “especificidades da sua
tradução do neoliberalismo na educação portuguesa” (citado por
BENTO, 2001, p. 62) que resultam “quer da especificidade da evolução económica,
social e política do pós 25 de Abril, quer da necessidade de Portugal
(re)encontrar ou (re)definir o seu espaço e estratégia de inserção no sistema
mundial” (AFONSO, 1998, p. 175). Com efeito, são as características
de “semiperiferialização da formação social portuguesa associada à crise
revolucionária vivida em Abril de 74” (CORREIA, 1994, p. 20) que vão estar
na base de um discurso que se apoia num modelo neoliberal global que procura “responder
às novas exigências‟ do sistema económico e produtivo” (ANTUNES, 1998, p.
88) e, simultaneamente, atribui particular importância à problemática da
legitimação “onde as referências à igualdade de oportunidades e aos valores
humanistas são particularmente frequentes” (CORREIA, 1994, p. 20).
As
ambiguidades discursivas‟ características deste período em Portugal.
Coexistem, deste modo, na formulação das políticas educativas, neste período,
dois vetores: “continuar a expandir o Estado em termos de realização de uma
maior igualdade de oportunidades e de democratização da educação pública, mas,
simultaneamente, tentar reduzir esse mesmo Estado abrindo o campo da educação à
iniciativa privada e à concretização de uma maior liberdade de ensino” (AFONSO,
2002b, p. 38).
A
reforma educativa portuguesa, neste período, apresenta, então, várias “ressonâncias
neoliberais” (AFONSO, 2002b) ao mesmo tempo que apresenta um carácter
ambíguo e híbrido, o que leva este autor a considerar que estamos perante um “neoliberalismo
educacional mitigado” (p. 38). São disto exemplo, as seguintes medidas:
-
liberdade de ensino e diversificação da oferta educativa, baseadas no
pressuposto de diminuição da intervenção do Estado e aumento da participação e
iniciativa da sociedade civil e que se fizeram sentir, nomeadamente, ao nível
do ensino superior. É, de facto, ao nível do ensino superior que se
fazem sentir as primeiras formas de regulação neoliberal, no campo educativo.
Durante este período existe uma quebra do monopólio estatal do ensino superior,
verificando-se um aumento substancial do ensino superior privado. No entanto, e
apesar dos discursos que procuravam estimular a competição e comparação entre
diferentes instituições do ensino superior, com o intuito de melhorar a
qualidade dessas mesmas instituições, a expansão do ensino superior nesta
altura, não traduziu por si só a criação de um mercado educacional. Como nos
diz Licínio Lima (citado por AFONSO, 2002b), “seja por omissão ou abandono
por parte do Estado, seja através de medidas de concessão e de privatização
propriamente dita, tem-se favorecido objetivamente a intervenção de sectores
específicos e de interesses muito particulares que (...) não chegam a
representar verdadeiramente um mercado‟” (p. 53);
-
A emergência das escolas profissionais, justificadas com a necessidade
de assegurar uma diversificação da oferta da educação, fazendo intervir e
responsabilizando o mundo empresarial na organização de ofertas locais de
formação (CORREIA, 2000). O Estado constitui, aqui, o principal interveniente na
promoção das escolas profissionais, na definição dos contratos-programa com os
promotores e na pilotagem do processo.
É
este facto que, segundo AFONSO (2002b) faz desta medida “mais um exemplo da
especificidade das políticas neoliberais em Portugal”, pois trata-se de um “«projeto
que se origina no Estado mas que pretende proclamar-se como uma aposta na
iniciativa local; um projeto da escola-mercado contemplado no âmbito de uma
política educativa liberalizante onde se defende a gestão privada dos recursos públicos»
(Stoer, 1991, p. 65)” (p. 55);
-
Aprovação de um novo modelo de direção e gestão das escolas básicas e
secundárias. A este propósito afirma AFONSO (2002b) que este modelo “é
um documento extremamente híbrido, onde é possível detetar marcas contraditórias
que sinalizam quer a vontade inicial dos autores das propostas ... de imprimir
maior dinamismo, participação e democratização à vida das escolas, quer marcas
posteriores que indiciam uma fragilização da direção democrática em favor de um
órgão de gestão (diretor executivo), a quem se atribuem responsabilidades e
competências que podem inverter aqueles valores (substituindo-os por outros
como a eficiência, a eficácia e o controlo), e levar a uma mudança importante
na natureza das relações entre gestores e geridos” (p. 56).
-
A introdução da avaliação aferida que foi entendida como “cumprindo
uma função de controlo externo ...; foi igualmente percecionada como um
mecanismo de solução da crise da escola ...; foi ainda interpretada como uma
possível estratégia de introdução da lógica de mercado na escola pública, da do
que poderia permitir que os resultados escolares ... viessem a ser utilizados
para estabelecer pressões competitivas no sistema educativo, induzindo a
emulação e a comparação sistemática entre estabelecimentos de ensino, e
suscitando a promoção de políticas baseadas na procura e livre escolha
educacional (cf. Afonso, 1994)” (AFONSO, 2002b, pp. 57-58).
Perante
estas medidas introduzidas no âmbito da reforma educativa portuguesa, AFONSO (2002b)
sintetiza da seguinte forma:
“Assim,
dado que muitos dos elementos e marcas tendencialmente neoliberais ou não
passaram dos discursos enquadradores à promulgação das políticas ou, dada a
especificidade da realidade portuguesa e do sistema educativo, assumiram
configurações extremamente ambíguas e contraditórias ou, ainda, quando foram
implementados, não produziram os efeitos verificados em outros contextos,
talvez seja mais rigoroso considerar que o que se desenvolveu entre nós, na
década em análise, aponta mais no sentido de um neoliberalismo educacional
mitigado, resultante das pressões contraditórias exercidas pelos diferentes
grupos e interesses sociais que participaram, direta ou indiretamente, na
definição da política educativa, do que no sentido da assunção inequívoca de
todos os traços e dimensões que, em outros países, foram considerados
expressivos e definidores das políticas da nova direita”.
1.2.
A
emergência de novos modos de regulação das políticas educativas
Como
assinalam DUTERCQ e VAN ZANTEN (2002), “no domínio da educação como noutros
domínios da acção pública, os antigos equilíbrios foram destabilizados por um
duplo movimento: um movimento de globalização, que limita a capacidade de ação
e de reflexão dos Estados-Nação e um movimento de localização, que leva a ter
em conta as dinâmicas que se operam na base e a harmonizá-las” (p. 7).
Neste contexto, o papel do Estado deixa de poder ser definido de uma maneira
unívoca: estamos perante um “Estado negociador” (Commaille e Jopert,
citados por DUTERCQ e VAN ZANTEN, 2002, p. 7) que integra diferentes dimensões
(Estado-total; Estado-estratega; Estado-avaliador) com dosagens variadas
segundo os países e segundo os campos de ação. Aliás, é nesta perspectiva que
AFONSO refere (2001) que nos deparamos hoje com uma série de designações (Estado-reflexivo;
Estado-ativo; Estado-articulador; Estado-supervisor; Estado-avaliador;
Estado-competidor) que expressam novas formas de atuação e profundas mudanças
no papel do Estado e que associam as reformas do Estado com a “realidade
multidimensional da globalização e das instâncias de regulação supranacional” (p.
25).
“
(…) começou-se, nos anos setenta e oitenta, pela liberalização e privatização.
Seguiu-se, nos anos noventa, a re-regulação, ou seja, o controlo das escolhas
privadas por imposição de regras públicas, precisamente em domínios dos quais
os Estados se haviam retirado. Assiste-se hoje, de forma difusa, à articulação
de regulações, isto é, à articulação das regulações nacionais que tomam em
conta variantes institucionais específicas, como a regulação europeia” (Gomes Canotilho, citado por
AFONSO, 2001, p. 25).
Evolução dos
modos de regulação da educação na Europa
As
reformas operadas, ao longo das décadas de 80 e 90, em diferentes países da
Europa revelam que há uma tendência dominante para o “reforço de novos modos
de controlo e de responsabilização das escolas” (AFONSO, 2003, P. 49) que
passa, nomeadamente pela substituição de um ‘controlo pelas normas’ por um
‘controlo pelos resultados’, através de uma participação local e da autonomia
das escolas e a criação de diferentes dispositivos de avaliação.
É,
exactamente, neste âmbito que se situa a análise empreendida por BARROSO et al
(2002) e AFONSO (2003), no âmbito do projeto europeu “Changes in regulation
modes and social production of inequalities in education systems: a european
comparison” e que procura caracterizar a evolução da regulação da educação
em cinco países europeus, baseando-se para tal em seis pontos críticos do
funcionamento do sistema: currículo; fluxo de alunos; gestão do pessoal
docente; controlo da oferta escolar; gestão de recursos financeiros; e
parcerias.
As
conclusões que derivam deste estudo apontam para seis aspetos relevantes na
evolução da regulação da educação na Europa:
a)
diversidade dos dispositivos e dos níveis de controlo – apesar de
algumas tendências convergentes, a diversidade de dispositivos e de níveis de
controlo entre os diferentes países estudados é evidente. Assim, surgem “tendências
que acentuam uma intenção de reforço do controlo estatal”, em países como a
Inglaterra e País de Gales e Bélgica (comunidade francófona), cuja “tradição
histórica consolidou uma oferta educativa baseada no ajustamento mútuo das
lógicas de ação dos atores ao nível local” (AFONSO, 2003, p. 55). E
tendências que “apontam para lógicas de regulação que acolhem ou fazem apelo
às iniciativas e ao jogo de forças dos atores, no plano local”, como é o
caso de países como Portugal, França e Hungria. Fazendo referência ao caso
particular de Portugal, é visível a existência de elementos que configuram
espaços de autonomia por parte das escolas e dos professores, “pela via de
dispositivos formais ou informais ou em consequência de medidas governamentais
específicas” num contexto onde o currículo é definido centralmente e
constitui “um elemento estruturante do sistema educativo nacional”. No
caso português, como refere AFONSO (2003) “as lógicas dos atores
confrontam-se com sinais contraditórios”, onde uma maior flexibilização da
gestão do currículo por parte das escolas, por exemplo, correspondeu a um
reforço dos dispositivos de controlo das aprendizagens e dos resultados
escolares, por parte da administração central e regional, através da “restauração
dos exames nacionais no final do ensino secundário” (p. 57);
b)
reforço da regulação mercantil – verifica-se nos diferentes países,
embora com níveis de desenvolvimento diferentes, uma tendência para o reforço
de lógicas referenciadas ao modelo de regulação mercantil. Assim, e tomando
como exemplo o controlo dos fluxos de alunos, são identificadas, neste estudo,
três configurações diferentes (três níveis diferentes de desenvolvimento do
reforço da regulação mercantil). Na Hungria e na Bélgica a “escolha da
escola pela família constitui uma prática corrente e institucionalizada”,
na Inglaterra e País de Gales, esta é “objeto de uma política ativa de
promoção por parte dos poderes públicos” e, finalmente, em França e
Portugal o reforço da regulação mercantil aparece com uma intensidade menor, na
medida em que subsistem dispositivos formais que privilegiam uma regulação
baseada em normativos legais. Nestes dois últimos países, apesar da existência
de um dispositivo como a carta escolar, têm vindo a aumentar as práticas de
escolha da escola por parte dos pais, fruto, nomeadamente, da redução
demográfica e do excesso de oferta escolar;
c)
erosão da profissionalidade docente – no que respeita a esta questão, o
estudo indica que o controlo da gestão do pessoal docente se concretiza por
intermédio de dois dispositivos diferentes. Em países como a Inglaterra e País
de Gales, Hungria e Comunidade francófona da Bélgica, onde domina o modelo de
regulação mercantil, “os professores são recrutados predominantemente a
nível local, a regulação da gestão da carreira obedece frequentemente a uma
lógica mercantil” (AFONSO, 2003, p. 64). Já em França e Portugal, onde é
dominante o modelo de regulação burocrática, “o recrutamento e a gestão da
carreira docente são e estão centralizados ao nível da administração do sistema
educativo”. Revela, no entanto, este estudo, que se presencia a uma
evolução num sentido aparentemente contraditório mas que aponta para uma
tendência convergentes, nos diferentes países: “reforço da regulação
mercantil nas situações onde o controlo burocrático é dominante e
desenvolvimento de dispositivos de controlo formal centralizador em situações
globalmente caracterizadas pelo predomínio de uma regulação centrada nas
lógicas de ação dos atores locais” (AFONSO, 2003, p. 67);
d)
intensificação da avaliação externa institucional e do controlo social sobre
a escola – o estudo empreendido por estes autores revela que existe uma
tendência dominante no sentido do “reforço dos dispositivos de avaliação
externa das escolas, numa lógica de promoção da regulação mercantil, através da
ativação da procura por parte das famílias, e do reforço de mecanismos formais
e informais de controlo social sobre a escola” (AFONSO, 2003, p. 68).
e)
flexibilização da provisão de recursos financeiros – no que respeita à
questão da gestão dos recursos financeiros, a tendência é no sentido do reforço
dos dispositivos de flexibilização, como são exemplo, a atribuição de dotações
globais em função do número de alunos, a promoção do financiamento ao nível
local, a captação de financiamento privado, etc e a “redução do envolvimento
direto dos serviços da administração educacional do Estado na gestão orçamental
das escolas” (AFONSO, 2003, p. 71). Com efeito, e fazendo referência ao
caso português, tem-se assistido ao nível da gestão escolar a um progressivo
reforço das competências das entidades locais, em particular das escolas e, em
menor grau, das autarquias.
f)
promoção da participação social no governo da escola pública – é
visível, neste campo, uma tendência para a criação de instâncias de
participação social no interior das escolas, com o intuito de aumentar o
envolvimento das comunidades na definição das políticas educativas locais e no
governo das escolas. Também aqui, é possível identificar, consoante os países,
diferentes configurações, com diferentes graus de “impacto”, no reforço
do controlo social sobre as escolas. Em Portugal, a legislação aprovada em 1998
(Decreto-lei nº 115-A/98 de 4 de Maio) consagra a participação de
representantes dos pais, dos alunos, das autarquias e de interesses económicos
e culturais locais, através do órgão Assembleia de Escola. Esta
representação é, contudo, minoritária e os resultados não ultrapassam um efeito
meramente retórico (BARROSO; ALMEIDA e HOMEM, 2001; AFONSO, 2003). Para além
desta participação formal e institucional, é frequente as escolas desenvolverem
estratégias de angariação de subsídios e apoio aos seus projetos, junto dos
pais, autarquias e empresas, assistindo-se também a um “reforço do movimento
associativo parental” (AFONSO, 2003, p. 73).
A
caracterização da evolução da regulação da educação na Europa, que é propiciada
através deste estudo, permite-nos, pois, perceber que há uma aceleração do
discurso e das práticas políticas que configuram o desenvolvimento de uma
‘regulação mercantil’. Constata-se, por um lado, um ‘enfraquecimento’ do papel
do Estado na prestação direta do serviço de educação e do uso de estratégias de
regulação normativa, e por outro, uma “tendência crescente para a
valorização de estratégias de regulação viradas para a responsabilização pelos
resultados”. Como sublinha AFONSO (2003),
“Pretende-se
agora recentrar a intervenção estatal numa lógica de controlo social da escola,
com a promoção da avaliação externa e da responsabilização direta pelos
resultados dos alunos, privilegiando dispositivos de regulação centrados no
ajustamento mútuo‟ resultante da contraposição e complementaridade das lógicas
de ação, e que são típicos da regulação mercantil” (p. 53).
Emergência de
novos modos de regulação da educação
A
realização de estudos comparados sobre os modos de regulação da educação, têm
permitido evidenciar a coexistência em vários países de discursos e medidas
semelhantes que indiciam fenómenos de convergência que resultam, por um lado “dos
processos de integração supranacional das economias e das políticas (conhecidos
pela designação de „mundialização‟ ou „globalização‟)” e por outro, “da
permeabilidade do discurso político às retóricas de legitimação difundidas
pelos centros de decisão e difusão internacionais” (BARROSO, 2003b, p. 84)
através do que este autor chama de ‘efeito de contaminação’. Com efeito, “…existe um processo de convergência das
políticas educativas e de bem estar social em países que têm histórias
políticas e políticas de bem estar social bastante distintas… (BALL, 2001,
p. 112) .
É
possível identificar, então, no que se refere à introdução e transformação dos
modos de regulação das políticas educativas, três tipos de efeitos (BARROSO,
2003a; 2004), que resultam, no “aumento
da regulação transnacional”, no “hibridismo da regulação nacional” e na “fragmentação da regulação local”:
“-
o efeito de contaminação que existe ao nível da transferência dos conceitos,
das políticas e das medidas postas em prática, entre os países, à escala
mundial;
-
o efeito de hibridismo que resulta da sobreposição ou mestiçagem de diferentes
lógicas, discursos e práticas na definição e ação públicas, o que reforça o seu
carácter ambíguo e compósito;
-
o efeito mosaico que resulta do processo de construção destas mesmas políticas
que raramente atingem a globalidade dos sistemas escolares e que, na maior
parte das vezes, resultam de medidas avulsas de derrogação das normas vigentes,
visando situações, públicos ou clientelas especificas.” (BARROSO, 2003a, p. 24-25)
Esta
‘regulação transnacional’ tem origem:
-nos
países centrais, fazendo parte de um sistema de dependências em que se
encontram os países periféricos e semiperiféricos;
-em
estruturas supra-nacionais (como a União Europeia, no caso de Portugal),
que “controlam e coordenam, através das regras e dos sistemas de
financiamento, a execução das políticas” (BARROSO, 2004) no domínio
educativo;
-em
programas de cooperação e desenvolvimento de organizações como o Banco
Mundial, a OCDE, a UNESCO, ETC, que fornecem guiões standard para o
desenvolvimento educacional, a assistência concreta, consultores para colaborar
no terreno e formas dos educadores e administradores participarem neste
processo, obtendo um maior status (MEYER, 2000, p. 20).
Estas
influências globais‟ (MEYER, 2000) situam-se, assim, em domínios desde o
currículo às estruturas organizacionais e funcionam como um meio de legitimação
e de normalização das políticas educativas nacionais.
“…a
hipótese que aqui se defende é que o recurso ao estrangeiro funciona, prioritariamente, como um elemento
de legitimação de opções assumidas no plano nacional, e muito pouco como um
esforço sério de um conhecimento contextualizado de outras experiências e de
outras realidades. Este
contexto de aumento da regulação transnacional‟ transporta-nos para a
segunda constatação que faz BARROSO (2004), no contexto da análise da
emergência de novos modos de regulação das políticas educativas, o
hibridismo da regulação nacional‟. Regulação nacional entendida, como “o
modo como as autoridades públicas exercem a coordenação, o controlo e a
influência sobre o sistema educativo, orientando através de normas, injunções e
constrangimentos o contexto da ação dos diferentes atores sociais e seus
resultados”, associada ao conceito de hibridismo na medida em que
resulta da “sobreposição ou mestiçagem de diferentes lógicas, discursos e
práticas na definição e ação políticas”.
Este
hibridismo manifesta-se, segundo BARROSO (2003a; 2004) a dois níveis: “nas
relações entre países, pondo em causa a ideia de que estamos em presença de uma
aplicação passiva‟, pelos países da periferia, dos modelos‟ de regulação
concebidos e exportados pelo centro” e “na utilização no mesmo país, de
modos de regulação procedentes de „modelos‟ distintos”. Por esta razão, “as
políticas nacionais necessitam ser compreendidas como o produto de um nexo de
influências e interdependências que resultam numa «interconexão,
multiplexidade, e hibridização» (Amin, 1997, p. 129), isto é, «a combinação de
lógicas globais, distantes e locais» (p. 133)” (p. 102). Quanto à terceira constatação feita por
BARROSO (2004), esta diz respeito à „fragmentação da regulação local’.
Este conceito que nos remete para um “complexo jogo de estratégias,
negociações e ações” por parte dos vários atores é definido por este autor
como “o processo de coordenação da ação dos atores no terreno que resulta do
confronto, interação, negociação ou compromisso de diferentes interesses,
lógicas, racionalidades e estratégias em presença quer, numa perspectiva
vertical entre administradores‟ e administrados‟, quer numa perspectiva
horizontal, entre os diferentes ocupantes dum mesmo espaço de interdependência”.
Nesta
perspectiva, são diversos os pólos de influência da regulação local, desde os
serviços da administração desconcentrados e descentralizados, às organizações
educativas, aos atores individuais “com interferência direta no
funcionamento do sistema educativo quer como prestadores, quer como
utilizadores”. A existência destes múltiplos espaços de regulação ao nível
local provoca o tal efeito mosaico que, segundo BARROSO (2004)
contribui para acentuar a diversidade do sistema, mas também a desigualdade Por
tudo isto, este mesmo autor considera que os desafios situam-se em “gerir a
«multirregulação»” e “assegurar a «metarregulação»”, nomeadamente
através da criação de contextos que determinem mudanças que estejam ao serviço
da sociedade no seu conjunto e da assunção, por parte do Estado da função
essencial de regulador das regulações‟, no sentido de “equilibrar a ação
das diversas forças em presença, mas também continuar a garantir a orientação
global e a transformação do próprio sistema” (BARROSO, 2004).
Na
“encruzilhada entre o velho e o novo espaço público”, o problema
refere-se à necessidade,
“de
pensar por referência a um novo espaço público5 (não estatal) que continuará a
incluir de forma privilegiada o Estado (e os valores do domínio público) mas
que já não se pode equacionar sem a comunidade (e os valores que esta
pressupõe)” (AFONSO,
2002a, p. 87).
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