domingo, 29 de abril de 2012


Ficha de Leitura

A Escola e a Abordagem Comparada. Novas realidades e novos olhares.
 Rui Canário

“Vigilância crítica” - Toda a recolha de informação supõe um prévio olhar teórico que conduz a selecionar informação e a analisá-la de uma perspectiva particular.
A explicitação e o debate permanentes das ferramentas conceptuais que sustentam os vários “olhares teóricos” possíveis representam uma das principais marcas distintivas do trabalho de investigação científica.
Jürgen Schriewer – alertou para a importância decisiva de compreender e analisar, em profundidade, os constrangimentos que pesam e influenciam os processos de produção do saber científico. Esses constrangimentos estão presentes, quer sob a forma de pressupostos mentais, ou seja de teorias implícitas não criticadas, quer sob a forma de diferentes tipos de condicionamento social.

O papel central do trabalho teórico e da sua associação ao trabalho de resolução de problemas.

O trabalho de produção teórica desempenha, um papel central na atividade de investigação científica. Esse papel pode, funcionar segundo lógicas distintas e conduzir a resultados muito diversos: a teoria que orienta os nossos processos de observação pode levar-nos, quer a processos de produção de conhecimento, quer a processos de produção de reconhecimento que apenas confirmam aquilo que já era conhecido. É nesta perspectiva que Karl Popper (1999) se refere ao facto de as teorias, utensílios fundamentais do trabalho científico, poderem funcionar como “prisões mentais”.
A primeira “prisão mental” consiste em identificar e sobrepor educação e educação escolar, o que não nos deixa compreender o alcance das mutações em curso no campo educativo e que transcendem, largamente, as fronteiras dos sistemas escolares; a segunda “prisão mental” exprime- se pelo facto de, à semelhança do que acontece com o conjunto das ciências sociais, permanecermos reféns de um quadro de referência, o Estado-Nação, que continua a ser tido como a principal unidade de análise e como referente principal no trabalho de análise comparada.

A educação numa sociedade mundo

A evolução dos sistemas educativos situou-se, durante os últimos trinta anos, no contexto de um processo acelerado de integração económica supranacional, fenómeno de âmbito mundial do qual faz parte a construção da União Europeia. Este processo de “mundialização” traduz-se num conjunto de mudanças que, no plano económico, se concretiza sobretudo na liberalização dos movimentos de capitais, independentemente das fronteiras nacionais. Assiste-se a uma “transnacionalização” do capital.
Esta mudança, consentida e conduzida pelas autoridades políticas nacionais, retirou aos Estados nacionais a capacidade de controlarem os fluxos no interior e com o exterior das suas fronteiras, reduzindo a sua ação a um estatuto marginal.
A ação dos Estados nacionais passou a consistir em assegurar a melhor integração da sua sociedade no quadro mundial contribuindo para a emergência de uma “sociedade mundo” à qual corresponde um mercado mundial único (Mercure, 2001).
Do ponto de vista político, a racionalidade económica supranacional sobrepõe-se à racionalidade política nacional, o que, como assinala Habermas (1998, p.74), cria uma situação de “evicção da política pelo mercado consubstanciada num défice de legitimidade das instâncias políticas nacionais”. Estas confrontam-se com o duplo constrangimento de terem de responder perante duas instâncias distintas, o seu eleitorado e o mercado internacional de capitais procurando agir no sentido de extrair do processo democrático políticas conformes às exigências dos mercados (Crough & Streeck, 1996).
Estas transformações têm implicações importantes no campo da educação, a criação de uma nova ordem que altera e torna obsoletos os sistemas educativos concebidos num quadro estritamente nacional. As missões de reprodução de uma cultura e de uma força de trabalho nacionais deixam de fazer sentido numa perspectiva globalizada.
A finalidade de construir uma coesão nacional cede progressivamente lugar a uma subordinação funcional das políticas educativas aos imperativos de carácter económico inerentes a um mercado global e único.
Com base em estudos de educação comparada é possível afirmar a evidência empírica da existência de uma convergência, nas modificações observáveis ao nível da regulação dos sistemas educativos nos diferentes países e que resulta da emergência de um processo mais largo de “regulação transnacional” (Barroso, 2005a).
Os organismos supranacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, OCDE, Unesco, Comissão Europeia, Conselho da Europa, etc.) desempenham um papel fundamental no processo de regulação transnacional, através de programas de cooperação técnica, de apoio à investigação e ao desenvolvimento, sugerem ou impõem, de modo uniformizado, diagnósticos, técnicas e soluções. A regulação transnacional das políticas educativas opera-se, quer por um efeito de “contaminação”, entre países, de conceitos, políticas e medidas, quer por um efeito de “externalização”, em que as medidas tomadas ao nível nacional são legitimadas pelos exemplos do exterior (Barroso, 2005a, pp. 153/155).
Ronald Sultana (2005) refere que os grupos de pressão económica influenciam as iniciativas e decisões de política educativa tomada pela União Europeia. Para este autor, a similitude e a coincidência temporal das agendas educativas destas instâncias económicas e políticas corresponde a uma “rede estreita que abrange todos os níveis da educação, mesmo os mais elevados”.
A emergência de um processo de regulação transnacional dos sistemas educativos não pode ser dissociado do recuo político do Estado-Nação, cuja existência é parcialmente conflitual e se institui como um obstáculo à afirmação plena de uma “educação sem fronteiras”, concretizada num “comércio mundial de serviços educativos”, como sustenta Martin Lawn (2005).
No plano nacional, a mercantilização da educação exprime-se, quer pela adoção, por parte dos sistemas públicos, de modalidades de gestão próximas dos critérios empresariais (“new public management”), quer pela instituição de mecanismos de “quasi-mercado”, traduzidos na concorrência entre estabelecimentos de ensino, acompanhada por modalidades de segregação escolar, por via das escolhas parentais e de mecanismos de seleção dos alunos, ou pela atribuição a entidades privadas da prestação de serviços educativos até agora internos aos serviços públicos.
A influência dos organismos supranacionais na definição e uniformização de políticas exerce-se, através de mecanismos de financiamento, segundo uma lógica de “programas” de “livre” e “voluntária” adesão (mobilidade de estudantes e professores, equivalências de diplomas) que concorrem decisivamente, segundo António Nóvoa (2005b), para a consolidação de um “mercado mundial da educação”.
A dificuldade em compreender os novos modos de regulação que estão a ser postos em prática tem a ver com o “gouvernance”. A emergência deste conceito está associada à erosão política do Estado-Nação e em simultâneo com a ausência de mandatos legítimos de organismos supranacionais, de grandes empresas e de organizações não-governamentais que estabelecem uma regulação de facto.
A noção de “gouvernance” apela a modalidades de regulação, num contexto em que se verifica “uma interpenetração de fronteiras entre o técnico e o político, entre o público e o privado, entre o nacional e o internacional” (Defarges, 2003, p. 46).
É esta situação que torna urgente encontrar novas legitimidades que permitam repensar o “viver em conjunto” no mundo (Revel, 2006).
Neste contexto insere-se o valioso contributo de Júlia Resnik que, assinalou o facto de os conceitos teóricos com os quais trabalhamos terem sido elaborados numa época em que o Estado-Nação era dominante e questionar a pertinência desses utensílios intelectuais nas sociedades de hoje, de construir alternativas às abordagens comparativas clássicas, focalizadas na comparação entre realidades nacionais. Nesta perspectiva, torna-se imperativo evoluir de uma conceção redutora de comparação entre Estados nacionais para, diversificando os níveis e unidades de análise, agarrar o campo das inter-relações societais que estão para além da unidade de análise constituída por cada país.

Educação/formação: fronteiras que se esbatem

Vivemos no tempo da “Aprendizagem ao longo da Vida”, uma espécie de concretização dos ideais do movimento de Educação Permanente, da Unesco, anos 70 (Finger &Asún, 2001) e num contexto em que a perspectiva do pleno emprego desapareceu.
Atualmente, as políticas e práticas de educação escolar inscrevem-se num conjunto mais vasto e coerente de políticas de educação/formação funcionalmente subordinadas aos imperativos da racionalidade económica dominante e às exigências de “produtividade”, “competitividade” e “empregabilidade”.
A emergência desta nova realidade, decorrente do processo de globalização, conduz a encarar a educação como uma mercadoria, concebendo-a como um processo de produção para o mercado de trabalho de indivíduos “empregáveis”, “flexíveis”, “adaptáveis” e “competitivos” (Charlot, 2005). As atuais políticas de educação/formação, que em simultâneo com o declínio do Estado- Nação, supõem um processo de “desinstitucionalização” da escola (Dubet, 2002), enquanto um dos seus principais pilares (juntamente com a Igreja e o Exército). Há medida que a dominância da racionalidade económica tende a fazer definhar a racionalidade e a dimensão políticas, a escola não pode continuar a exercer a sua função de igreja de uma “religião cívica” que fabricaria bons cidadãos.
Estas mudanças traduzem-se, no plano pedagógico, numa erosão da centralidade da educação escolar que inclui, quer a erosão da centralidade da escola no monopólio legítimo da certificação de conhecimentos (Martucelli, 2001), quer a afirmação do modelo do “sujeito aprendente”. Este modelo transcende largamente os limites do território escolar e exprime, no campo educativo, o acentuar da responsabilização individual, já dominante no campo da economia. A individualização da educação tem como finalidade produzir “empresários de si” disciplinados (Lawn, 2005). François Audiguier, sublinhou que num mundo dominado por uma racionalidade económica em que reina o conceito de “empregabilidade” o sentimento de pertença define-se por relação com um mercado mundial e deixa de se definir pela pertença a uma comunidade política.
É neste contexto que se torna compreensível a criação recente de um neologismo que viria a redesenhar as relações com o saber e as modalidades de aprender (Carré, 2005). Refiro-me ao conceito de “apprenance”, assim definido por Philippe Carré e Pierre Caspar no seu “Tratado das ciências e das técnicas da formação”: “(…) conjunto de disposições cognitivas, afetivas e motivacionais propício ao ato de aprender em todas as situações, formais ou informais. E isto de modo experiencial ou didático, autodirigido ou não, intencional ou fortuito. Atitude favorável à implicação na formação ‘ao longo da vida’, a ‘apprenance’ seria então a postura pró-activa, autoformadora, à qual nos convida a entrada numa sociedade cognitiva” (2004, p. 197).
Na sequência da designada “estratégia de Lisboa” (projeto de transformar a economia europeia na “mais competitiva e moderna do mundo”), a Comissão Europeia produziu, em 2002, um documento de orientação estratégica com o título de “Educação e Formação na Europa: sistemas diferentes, objetivos comuns para 2010”. A preponderância atribuída às exigências do mercado de trabalho e de gestão do emprego é acompanhada da emergência de um novo paradigma educativo ao qual corresponde um “vocabulário específico” em que se fala cada vez mais de competências e menos de cultura (Lamarche, 2006). Os objetivos enunciados neste documento, agrupados em três eixos estratégicos, são em número de treze, oito dos quais referem-se à aquisição de competências adequadas a um novo tipo de mercado de trabalho e de espaço económico alargado.
Um dos objetivos refere-se à promoção da cidadania e da coesão social, dois dizem respeito à criação de novos ambientes de aprendizagem. Os dois restantes apontam para melhorias da eficácia da ação educativa, através do aperfeiçoamento da formação de educadores e de professores e da otimização da utilização de recursos. Na formulação, quer destes objetivos e dos objetivos estratégicos que os enquadram, não aparece nunca o vocábulo “escola” ou “escolar “e o vocábulo formação é amplamente utilizado. A mudança clara do vocabulário utilizado é revelador de novas conceções educativas, associadas a novas políticas e novas modalidades de regulação.

Recomposição do ofício de formador

As mudanças em curso no campo educativo têm consequências na recomposição das “famílias” profissionais que operam no domínio educativo, com particular incidência na profissão docente, cujos problemas acompanham as transformações, tensões e crises que atravessam o universo escolar.
Em simultâneo com os processos de reorganização de sentido empresarial que afetam a generalidade das organizações públicas produtoras de bens e de serviços, a escola é marcada, segundo Demailly & Dembinski (2000), por uma tensão contraditória entre modos de gestão (com repercussões negativas na profissão docente).
A promoção do modelo profissional do professor, encarado como um “prático-reflexivo”, é geradora de injunções de natureza paradoxal, em que “os professores são convidados a ser autónomos através de uma via definida de maneira heterónoma” (Cattonar & Maroy, 2000, p. 31). Não é, portanto, surpreendente que se possa verificar que o estatuto social do professor tende a diminuir, a sua identidade profissional a diluir-se, a legitimidade do seu trabalho a ser questionada, a eficácia dos seus métodos e dos seus resultados a ser contestada. Em suma, o professor tende a tornar-se o “bode expiatório” dos problemas e tensões que marcam negativamente o mundo escolar (Barrroso, 2005b).
Um recente estudo comparativo realizado ao nível europeu confirmou a coincidência entre novas modalidades de regulação dos sistemas escolares, nomeadamente uma crescente autonomia dos estabelecimentos de ensino, com uma crescente erosão da autonomia profissional, individual e coletiva dos professores (Maroy, 2004). Verifica-se a existência de um duplo constrangimento, decorrente de uma autonomia imposta da exterior vivida pelos professores como um constrangimento.
Agnès van Zanten mostrou como a “crise” da profissão docente se relaciona com a crise de um modelo de regulação burocrático/ profissional, em simultâneo com a emergência de lógicas de mercado, com a dissociação entre as lógicas de ação profissional e as lógicas externas aos estabelecimentos de ensino, bem como do reforço do enquadramento externo e interno aos estabelecimentos, contraditório com a retórica difundida sobre a autonomia profissional.
Para António Nóvoa (2005a), apesar das suas evoluções, a educação comparada tem permanecido prisioneira da materialidade do Estado- Nação, como unidade de análise, e nem uma definição física do espaço nem uma definição cronológica de tempo servem adequadamente os propósitos da investigação comparada. É nesta perspectiva que uma reconceptualização das relações espaço-tempo implica consagrar menos importância aos espaços físicos e mais importância aos espaços interpretativos.
Enunciar os quatro grandes problemas que emergiram:
- O modo como equacionamos as relações entre o nível global, o nível nacional e o nível local.
 À semelhança do que aconteceu nos anos 80, quando se começou a falar da “descoberta da escola”, enquanto nível meso de análise e intervenção, o mesmo tipo de terminologia foi parcialmente transposto para uma pretensa “descoberta do local”, ao qual se viria juntar a “descoberta” de um nível global. A articulação entre estes três níveis de análise é construída a partir de uma visão, por um lado, hierárquica, linear e estanque, por outro lado, como uma justaposição de níveis em que permanece como referente central a unidade Estado- Nação.
 A persistência de uma oposição dicotómica e redutora entre o Estado e o mercado revelam a mesma dificuldade de romper com uma perspectiva centrada no Estado nacional, bem como a dificuldade de elucidar e trabalhar conceitos adequados a uma realidade que é nova. Convém recordar que a existência de “mercado” precedeu historicamente o nascimento dos modernos Estados-Nação e que o mercado capitalista “auto regulado” pela livre concorrência, como o teorizaram os economistas clássicos, nunca existiu. Nesta perspectiva, a vulgarização do conceito de “neoliberalismo” representa, ao mesmo tempo, um anacronismo e uma incompreensão do significado dos processos em curso de integração económica supra nacional. Vivemos num mundo dominado por uma lógica de oligopólios e não por uma lógica de livre concorrência. Muito provavelmente há um “novo” tipo de Estado que existe e se desenvolve sob os nossos olhos, mas que não é visível por falta dos utensílios conceptuais adequados.
Por isso é possível falar da existência de “fronteiras fluidas do Estado” e afirmar que não há, em absoluto, “menos Estado”, mas sim uma recomposição da acão pública que remete para o conceito, ele próprio vago e fluido, de “gouvernance” (Lamarche, 2006). É no mesmo sentido que Barroso (2005a) afirma de modo incisivo que a questão não pode ser equacionada em termos de “mais” ou “menos” Estado, mas em termos de “um outro” Estado.
- Saber quais as repercussões na esfera política dos modos de “gouvernance” que regulam de forma complexas diferentes lógicas de ação em diferentes níveis de intervenção.
- O questionamento do sentido da educação e a reintrodução da dimensão filosófica e política, na teorização e análise empírica das práticas e das políticas educativas. Este problema é tanto mais pertinente, quanto vivemos numa época em que, como escreveu Martin Lawn (2005, p. 45), “a eficácia do mercado se substituiu à significação”. Apesar de alguns o terem preconizado, não vivemos num tempo em que os grandes debates educativos se tornaram supérfluos.

Bibliografia: A Escola e a Abordagem Comparada. Novas realidades e novos olhares
Rui Canário - : s í s i f o 1 - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa ulfprcan@fpce.ul.pt

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