Ficha de Leitura
A Escola e a
Abordagem Comparada. Novas realidades e novos olhares.
Rui
Canário
“Vigilância
crítica” - Toda a recolha de informação supõe um prévio olhar teórico que
conduz a selecionar informação e a analisá-la de uma perspectiva particular.
A
explicitação e o debate permanentes das ferramentas conceptuais que sustentam
os vários “olhares teóricos” possíveis representam uma das principais marcas
distintivas do trabalho de investigação científica.
Jürgen
Schriewer – alertou para a importância decisiva de compreender e analisar, em
profundidade, os constrangimentos que pesam e influenciam os processos de
produção do saber científico. Esses constrangimentos estão presentes, quer sob
a forma de pressupostos mentais, ou seja de teorias implícitas não criticadas,
quer sob a forma de diferentes tipos de condicionamento social.
O papel central
do trabalho teórico e da sua associação ao trabalho de resolução de problemas.
O
trabalho de produção teórica desempenha, um papel central na atividade de
investigação científica. Esse papel pode, funcionar segundo lógicas distintas e
conduzir a resultados muito diversos: a teoria que orienta os nossos processos
de observação pode levar-nos, quer a processos de produção de conhecimento,
quer a processos de produção de reconhecimento que apenas confirmam
aquilo que já era conhecido. É nesta perspectiva que Karl Popper (1999) se
refere ao facto de as teorias, utensílios fundamentais do trabalho científico,
poderem funcionar como “prisões mentais”.
A
primeira “prisão mental” consiste em identificar e sobrepor educação e educação
escolar, o que não nos deixa compreender o alcance das mutações em curso no
campo educativo e que transcendem, largamente, as fronteiras dos sistemas escolares;
a segunda “prisão mental” exprime- se pelo facto de, à semelhança do que
acontece com o conjunto das ciências sociais, permanecermos reféns de um quadro
de referência, o Estado-Nação, que continua a ser tido como a principal unidade
de análise e como referente principal no trabalho de análise comparada.
A educação numa
sociedade mundo
A
evolução dos sistemas educativos situou-se, durante os últimos trinta anos, no
contexto de um processo acelerado de integração económica supranacional,
fenómeno de âmbito mundial do qual faz parte a construção da União Europeia. Este
processo de “mundialização” traduz-se num conjunto de mudanças que, no plano
económico, se concretiza sobretudo na liberalização dos movimentos de capitais,
independentemente das fronteiras nacionais. Assiste-se a uma
“transnacionalização” do capital.
Esta
mudança, consentida e conduzida pelas autoridades políticas nacionais, retirou
aos Estados nacionais a capacidade de controlarem os fluxos no interior e com o
exterior das suas fronteiras, reduzindo a sua ação a um estatuto marginal.
A
ação dos Estados nacionais passou a consistir em assegurar a melhor integração
da sua sociedade no quadro mundial contribuindo para a emergência de uma
“sociedade mundo” à qual corresponde um mercado mundial único (Mercure, 2001).
Do
ponto de vista político, a racionalidade económica supranacional sobrepõe-se à
racionalidade política nacional, o que, como assinala Habermas (1998, p.74),
cria uma situação de “evicção da política pelo mercado consubstanciada num
défice de legitimidade das instâncias políticas nacionais”. Estas confrontam-se
com o duplo constrangimento de terem de responder perante duas instâncias
distintas, o seu eleitorado e o mercado internacional de capitais procurando
agir no sentido de extrair do processo democrático políticas conformes às
exigências dos mercados (Crough & Streeck, 1996).
Estas
transformações têm implicações importantes no campo da educação, a criação de
uma nova ordem que altera e torna obsoletos os sistemas educativos concebidos
num quadro estritamente nacional. As missões de reprodução de uma cultura e de
uma força de trabalho nacionais deixam de fazer sentido numa perspectiva
globalizada.
A
finalidade de construir uma coesão nacional cede progressivamente lugar a uma
subordinação funcional das políticas educativas aos imperativos de carácter
económico inerentes a um mercado global e único.
Com
base em estudos de educação comparada é possível afirmar a evidência empírica
da existência de uma convergência, nas modificações observáveis ao nível da regulação
dos sistemas educativos nos diferentes países e que resulta da emergência de um
processo mais largo de “regulação transnacional” (Barroso, 2005a).
Os
organismos supranacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, OCDE,
Unesco, Comissão Europeia, Conselho da Europa, etc.) desempenham um papel
fundamental no processo de regulação transnacional, através de programas de
cooperação técnica, de apoio à investigação e ao desenvolvimento, sugerem ou
impõem, de modo uniformizado, diagnósticos, técnicas e soluções. A regulação
transnacional das políticas educativas opera-se, quer por um efeito de
“contaminação”, entre países, de conceitos, políticas e medidas, quer por um
efeito de “externalização”, em que as medidas tomadas ao nível nacional são legitimadas
pelos exemplos do exterior (Barroso, 2005a, pp. 153/155).
Ronald
Sultana (2005) refere que os grupos de pressão económica influenciam as
iniciativas e decisões de política educativa tomada pela União Europeia. Para
este autor, a similitude e a coincidência temporal das agendas educativas
destas instâncias económicas e políticas corresponde a uma “rede estreita que
abrange todos os níveis da educação, mesmo os mais elevados”.
A
emergência de um processo de regulação transnacional dos sistemas educativos
não pode ser dissociado do recuo político do Estado-Nação, cuja existência é
parcialmente conflitual e se institui como um obstáculo à afirmação plena de
uma “educação sem fronteiras”, concretizada num “comércio mundial de serviços
educativos”, como sustenta Martin Lawn (2005).
No
plano nacional, a mercantilização da educação exprime-se, quer pela adoção, por
parte dos sistemas públicos, de modalidades de gestão próximas dos critérios
empresariais (“new public management”), quer pela instituição de mecanismos de
“quasi-mercado”, traduzidos na concorrência entre estabelecimentos de ensino,
acompanhada por modalidades de segregação escolar, por via das escolhas
parentais e de mecanismos de seleção dos alunos, ou pela atribuição a entidades
privadas da prestação de serviços educativos até agora internos aos serviços
públicos.
A
influência dos organismos supranacionais na definição e uniformização de políticas
exerce-se, através de mecanismos de financiamento, segundo uma lógica de
“programas” de “livre” e “voluntária” adesão (mobilidade de estudantes e
professores, equivalências de diplomas) que concorrem decisivamente, segundo
António Nóvoa (2005b), para a consolidação de um “mercado mundial da educação”.
A
dificuldade em compreender os novos modos de regulação que estão a ser postos
em prática tem a ver com o “gouvernance”. A emergência deste conceito está
associada à erosão política do Estado-Nação e em simultâneo com a ausência de
mandatos legítimos de organismos supranacionais, de grandes empresas e de
organizações não-governamentais que estabelecem uma regulação de facto.
A
noção de “gouvernance” apela a modalidades de regulação, num contexto em que se
verifica “uma interpenetração de fronteiras entre o técnico e o político, entre
o público e o privado, entre o nacional e o internacional” (Defarges, 2003, p.
46).
É
esta situação que torna urgente encontrar novas legitimidades que permitam
repensar o “viver em conjunto” no mundo (Revel, 2006).
Neste
contexto insere-se o valioso contributo de Júlia Resnik que, assinalou o facto
de os conceitos teóricos com os quais trabalhamos terem sido elaborados numa época
em que o Estado-Nação era dominante e questionar a pertinência desses
utensílios intelectuais nas sociedades de hoje, de construir alternativas às abordagens
comparativas clássicas, focalizadas na comparação entre realidades nacionais.
Nesta perspectiva, torna-se imperativo evoluir de uma conceção redutora de comparação
entre Estados nacionais para, diversificando os níveis e unidades de análise,
agarrar o campo das inter-relações societais que estão para além da unidade de
análise constituída por cada país.
Educação/formação:
fronteiras que se esbatem
Vivemos
no tempo da “Aprendizagem ao longo da Vida”, uma espécie de concretização dos
ideais do movimento de Educação Permanente, da Unesco, anos 70 (Finger &Asún,
2001) e num contexto em que a perspectiva do pleno emprego desapareceu.
Atualmente,
as políticas e práticas de educação escolar inscrevem-se num conjunto mais
vasto e coerente de políticas de educação/formação funcionalmente subordinadas
aos imperativos da racionalidade económica dominante e às exigências de
“produtividade”, “competitividade” e “empregabilidade”.
A
emergência desta nova realidade, decorrente do processo de globalização, conduz
a encarar a educação como uma mercadoria, concebendo-a como um processo de
produção para o mercado de trabalho de indivíduos “empregáveis”, “flexíveis”,
“adaptáveis” e “competitivos” (Charlot, 2005). As atuais políticas de
educação/formação, que em simultâneo com o declínio do Estado- Nação, supõem um
processo de “desinstitucionalização” da escola (Dubet, 2002), enquanto um dos seus
principais pilares (juntamente com a Igreja e o Exército). Há medida que a
dominância da racionalidade económica tende a fazer definhar a racionalidade e
a dimensão políticas, a escola não pode continuar a exercer a sua função de
igreja de uma “religião cívica” que fabricaria bons cidadãos.
Estas
mudanças traduzem-se, no plano pedagógico, numa erosão da centralidade da
educação escolar que inclui, quer a erosão da centralidade da escola no
monopólio legítimo da certificação de conhecimentos (Martucelli, 2001), quer a
afirmação do modelo do “sujeito aprendente”. Este modelo transcende largamente
os limites do território escolar e exprime, no campo educativo, o acentuar da
responsabilização individual, já dominante no campo da economia. A
individualização da educação tem como finalidade produzir “empresários de si”
disciplinados (Lawn, 2005). François Audiguier, sublinhou que num mundo
dominado por uma racionalidade económica em que reina o conceito de
“empregabilidade” o sentimento de pertença define-se por relação com um mercado
mundial e deixa de se definir pela pertença a uma comunidade política.
É
neste contexto que se torna compreensível a criação recente de um neologismo
que viria a redesenhar as relações com o saber e as modalidades de aprender
(Carré, 2005). Refiro-me ao conceito de “apprenance”, assim definido por
Philippe Carré e Pierre Caspar no seu “Tratado das ciências e das técnicas da
formação”: “(…) conjunto de disposições cognitivas, afetivas e
motivacionais propício ao ato de aprender em todas as situações, formais
ou informais. E isto de modo experiencial ou didático, autodirigido ou
não, intencional ou fortuito. Atitude favorável à implicação na
formação ‘ao longo da vida’, a ‘apprenance’ seria então a postura
pró-activa, autoformadora, à qual nos convida a entrada numa sociedade
cognitiva” (2004, p. 197).
Na
sequência da designada “estratégia de Lisboa” (projeto de transformar a
economia europeia na “mais competitiva e moderna do mundo”), a Comissão
Europeia produziu, em 2002, um documento de orientação estratégica com o título
de “Educação e Formação na Europa: sistemas diferentes, objetivos
comuns para 2010”. A preponderância atribuída às exigências do mercado de
trabalho e de gestão do emprego é acompanhada da emergência de um novo
paradigma educativo ao qual corresponde um “vocabulário específico” em que se
fala cada vez mais de competências e menos de cultura (Lamarche, 2006). Os objetivos
enunciados neste documento, agrupados em três eixos estratégicos, são em número
de treze, oito dos quais referem-se à aquisição de competências adequadas a um
novo tipo de mercado de trabalho e de espaço económico alargado.
Um
dos objetivos refere-se à promoção da cidadania e da coesão social, dois dizem
respeito à criação de novos ambientes de aprendizagem. Os dois restantes
apontam para melhorias da eficácia da ação educativa, através do
aperfeiçoamento da formação de educadores e de professores e da otimização da
utilização de recursos. Na formulação, quer destes objetivos e dos objetivos
estratégicos que os enquadram, não aparece nunca o vocábulo “escola” ou “escolar
“e o vocábulo formação é amplamente utilizado. A mudança clara do vocabulário
utilizado é revelador de novas conceções educativas, associadas a novas
políticas e novas modalidades de regulação.
Recomposição do
ofício de formador
As
mudanças em curso no campo educativo têm consequências na recomposição das
“famílias” profissionais que operam no domínio educativo, com particular
incidência na profissão docente, cujos problemas acompanham as transformações,
tensões e crises que atravessam o universo escolar.
Em
simultâneo com os processos de reorganização de sentido empresarial que afetam
a generalidade das organizações públicas produtoras de bens e de serviços, a
escola é marcada, segundo Demailly & Dembinski (2000), por uma tensão
contraditória entre modos de gestão (com repercussões negativas na profissão
docente).
A
promoção do modelo profissional do professor, encarado como um “prático-reflexivo”,
é geradora de injunções de natureza paradoxal, em que “os professores são
convidados a ser autónomos através de uma via definida de maneira heterónoma”
(Cattonar & Maroy, 2000, p. 31). Não é, portanto, surpreendente que se
possa verificar que o estatuto social do professor tende a diminuir, a sua identidade
profissional a diluir-se, a legitimidade do seu trabalho a ser questionada, a
eficácia dos seus métodos e dos seus resultados a ser contestada. Em suma, o
professor tende a tornar-se o “bode expiatório” dos problemas e tensões que
marcam negativamente o mundo escolar (Barrroso, 2005b).
Um
recente estudo comparativo realizado ao nível europeu confirmou a coincidência
entre novas modalidades de regulação dos sistemas escolares, nomeadamente uma
crescente autonomia dos estabelecimentos de ensino, com uma crescente erosão da
autonomia profissional, individual e coletiva dos professores (Maroy, 2004).
Verifica-se a existência de um duplo constrangimento, decorrente de uma autonomia
imposta da exterior vivida pelos professores como um constrangimento.
Agnès
van Zanten mostrou como a “crise” da profissão docente se relaciona com a crise
de um modelo de regulação burocrático/ profissional, em simultâneo com a
emergência de lógicas de mercado, com a dissociação entre as lógicas de ação
profissional e as lógicas externas aos estabelecimentos de ensino, bem como do
reforço do enquadramento externo e interno aos estabelecimentos, contraditório
com a retórica difundida sobre a autonomia profissional.
Para
António Nóvoa (2005a), apesar das suas evoluções, a educação comparada tem
permanecido prisioneira da materialidade do Estado- Nação, como unidade de
análise, e nem uma definição física do espaço nem uma definição cronológica de
tempo servem adequadamente os propósitos da investigação comparada. É nesta
perspectiva que uma reconceptualização das relações espaço-tempo implica
consagrar menos importância aos espaços físicos e mais importância aos espaços
interpretativos.
Enunciar
os quatro grandes problemas que emergiram:
-
O modo como equacionamos as relações entre o nível global, o nível
nacional e o nível local.
À semelhança do que aconteceu nos anos 80,
quando se começou a falar da “descoberta da escola”, enquanto nível meso de
análise e intervenção, o mesmo tipo de terminologia foi parcialmente transposto
para uma pretensa “descoberta do local”, ao qual se viria juntar a “descoberta”
de um nível global. A articulação entre estes três níveis de análise é
construída a partir de uma visão, por um lado, hierárquica, linear e estanque,
por outro lado, como uma justaposição de níveis em que permanece como referente
central a unidade Estado- Nação.
A persistência de uma oposição dicotómica e
redutora entre o Estado e o mercado revelam a mesma dificuldade de
romper com uma perspectiva centrada no Estado nacional, bem como a dificuldade
de elucidar e trabalhar conceitos adequados a uma realidade que é nova. Convém
recordar que a existência de “mercado” precedeu historicamente o nascimento dos
modernos Estados-Nação e que o mercado capitalista “auto regulado” pela livre
concorrência, como o teorizaram os economistas clássicos, nunca existiu. Nesta
perspectiva, a vulgarização do conceito de “neoliberalismo” representa, ao
mesmo tempo, um anacronismo e uma incompreensão do significado dos processos em
curso de integração económica supra nacional. Vivemos num mundo dominado por
uma lógica de oligopólios e não por uma lógica de livre concorrência. Muito
provavelmente há um “novo” tipo de Estado que existe e se desenvolve sob os
nossos olhos, mas que não é visível por falta dos utensílios conceptuais
adequados.
Por
isso é possível falar da existência de “fronteiras fluidas do Estado” e afirmar
que não há, em absoluto, “menos Estado”, mas sim uma recomposição da acão
pública que remete para o conceito, ele próprio vago e fluido, de “gouvernance”
(Lamarche, 2006). É no mesmo sentido que Barroso (2005a) afirma de modo
incisivo que a questão não pode ser equacionada em termos de “mais” ou “menos”
Estado, mas em termos de “um outro” Estado.
-
Saber quais as repercussões na esfera política dos modos de “gouvernance”
que regulam de forma complexas diferentes lógicas de ação em diferentes níveis
de intervenção.
-
O questionamento do sentido da educação e a reintrodução da dimensão filosófica
e política, na teorização e análise empírica das práticas e das políticas
educativas. Este problema é tanto mais pertinente, quanto vivemos numa época em
que, como escreveu Martin Lawn (2005, p. 45), “a eficácia do mercado se
substituiu à significação”. Apesar de alguns o terem preconizado, não vivemos
num tempo em que os grandes debates educativos se tornaram supérfluos.
Bibliografia: A Escola e a
Abordagem Comparada. Novas realidades e novos olhares
Rui Canário - :
s í s i f o 1 - Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação da Universidade de Lisboa ulfprcan@fpce.ul.pt
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